Eis aqui tudo o que lembro:
A arma estava em minhas mãos frias.
Eu o via imóvel à entrada da cozinha. Seu sopro era um pesar arfado e denso. As mãos tremiam ensanguentadas e ansiosas.
Ele dizia aos prantos, prostrado sobre o corpo da amada esposa que sentia muito. Sentia muito! Sentia muito! Sentia muito – não parava de sentir! Ele falhou com essa família – foram esses seus dizeres. Ele chorava e se lastimava. Mas lamentos não param balas.
Ele caiu morto. E o som do disparo solo ainda ecoa em minha mente.
Talvez seja só uma falsa memória, a fantasia de uma mente perturbada. Ou talvez eu ouça noite após noite o som desse disparo porque eu estava lá. E eu o fiz cair quando apertei o gatilho entre meus dedos.
Mas há apenas três fatos concretos: a arma em minha mão, seus lamentos e pesares e eu imóvel e ensanguentada quando vieram me buscar.
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Meu nome é Emily Simões Ferraz. E todos têm uma opinião ao meu respeito.
Alguns acham que uma grande conspiração ultrassecreta me usou como bode expiatório, outros creem que eu seja a encarnação do demônio na Terra. Os mais sensatos? Reconhecem saber tanto quanto eu da verdade, ou seja, nada.
Contudo, a versão mais divulgada é a mais maniqueísta.
Eu acordei de madrugada e empossei-me de um machado. A tempestade caía forte. O granizo fazia um ruído insuportável contra o teto e as janelas. Não me ouviriam. Comecei pelo bebê, e após, matei meu irmão mais velho. Para meu deleite, encontrei minha mãe na copa. Ela gritou quando eu a cortei. Meu pai? Atirei nele porque não tive outra escolha. Ele me pegou durante o ato. Talvez tenha tentado investir contra mim e eu vi a arma ao meu alcance... ou houve uma luta corporal entre nós dois e ele perdeu. Algo do gênero.
Também, talvez, eu o tenha flagrado assassinando todo mundo. E atirei para pará-lo.
Há uma brecha nessa parte. Um rastro de pólvora na mão que mudou todo o destino. A bendita lacuna ínfima que me salvou de uma interdição judicial para uma mera detenção para menores infratores.
Não se sabe como meu pai morreu baleado quando eu era a maluca do machado. Havia pólvora em minha mão. Tinha pólvora na mão dele, mas a perícia comprovou que suicídio era impossível. E isso abre brecha para outra teoria. Muitos não creem nela, mas por milagre ela foi aceita. Tão bem aceita que aqui estou eu aguardando o meio-dia.
Meu pai é o homicida atroz e impiedoso. Um desnaturado que matou as próprias proles. Eu não passo da cúmplice abusada e coagida a cooperar.
Por razões não descobertas – nem mesmo imagináveis – ele matou meus irmãos e minha mãe. Talvez com meu auxílio para segurar Cássio enquanto morria ou calar Juan de uma vez por todas. E então, em êxtase de um surto psicótico, após testemunhar toda a matança, eu me agarro ao seu revólver e... Outras versões da mesma história dizem que ele convenceu-me e estimulou-me a fazer tudo, e daí, eu me virei contra ele.
Mas essa é uma história feita de brechas e incertezas. E eu tenho minhas próprias dúvidas.
Não sei se matei ou não os três, mas duvido que Marcelo Ferraz Duarte tenha o feito. Acredito em sua inocência, mesmo que ele tenha sentido muito e falhado com a família. Logo, também duvido que a arma em minha mão tenha ceifado seu destino. Mesmo que esteja provado e comprovado que o disparo saiu dela.
A morte do meu pai, os cogitados homicídios de sua parte, as minhas crises e inconsciências... nada me intriga mais que uma pergunta: se eu fiz mesmo o que me acusam, por que deixaria minha segunda mais óbvia vítima escapar para contar a história?
Por que a Lívia que eu tanto odiava e desprezava seria a final girl sobrevivente? Por que não Cássio ou o bebê que era inocente? Decerto ela mereceu mais uma vez compartilhar comigo o peso de um elo inquebrantável... ou talvez porque no último momento antes de o machado abraçar sua carne eu tenha sentido pena e empatia por minha vil e infeliz prima.
Muitos se intrigam se afinal Lívia saiu ilesa por que não ela a esclarecer os reais fatos? Por que não seu depoimento em Tribunal a acusar-me ou inocentar-me?
Porque ela está morta.
Em circunstâncias que eu desconheço, Lívia Simões de Souza foi torturada e assassinada após meses do Massacre. Agora, ela dança com sombras e demônios. No inferno, enquanto a família arde e abrasa unida, a intrusa é a mosca morta que zanza e zumbe ao redor deles.
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Ciranda dos Mortos
Mystery / ThrillerAs primas Lívia e Emily Ferraz foram as únicas sobreviventes de um massacre. No "Domingo Sangrento de Elinópolis", os pais e os dois irmãos de Emily foram brutalmente assassinados, sendo a jovem acusada pelo crime. Contudo, abusos de drogas e est...