Prólogo

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  Há uma fotografia desbotada do químico russo Dmitri Mendeleiev trabalhando em São Petersburgo, feita em algum momento no final do século XIX. Mostra uma figura gnômica sentada a uma mesa vasta e entulhada. Mendeleiev não parece muito diferente de um xamã siberiano transposto para um ambiente reconhecível como o habitat do sucessor moderno do xamã: o gabinete do professor genial. Tem uma barba branca, longa e emaranhada, que termina em três pontas distintas – o que revela um cofiar obsessivo durante períodos de ruminação distraída. Seu cabelo branco despenteado roça nos ombros. Mendeleiev tinha o hábito de cortar o cabelo uma vez por ano. No início do tempo mais tépido da primavera, costumava chamar o pastor local, que se encarregava desse assunto com um tosquiador. Esse é o famoso cabelo desgrenhado que, em certa ocasião, levou o químico escocês Sir William Ramsay a descrever Mendeleiev como "um estrangeiro peculiar, em cuja cabeça cada fio de cabelo se comportava de maneira independente de todos os demais". Ramsay supôs que Mendeleiev erada Sibéria, tomando-o por "um calmuco, ou uma dessas criaturas exóticas".Na fotografia Mendeleiev está concentrado num pedaço de papel, escrevendo com uma pena que as pontas de seus dedos longos seguram com firmeza. Folhas de papel sobre folhas de papel, uma caneca sobre um pires, vários instrumentos para propósitos indetermináveis e,em prateleiras sob a mesa, pastas de artigos científicos empilhadas ao acaso. 


  Nas costas de Mendeleiev há uma estante contendo três fileiras surpreendentemente ordenadas de volumes encadernados. No meio delas, uma grande chave com uma etiqueta está pendurada bem em cima de sua cabeça – como uma espécie de auréola científica, ou ponto de exclamação. (Eureca!) E, sobre a estante, o papel de parede decorado da época está forrado de fileiras irregulares de sombrios quadros emoldurados, retratos dos grandes cientistas do passado. Da penumbra superior, Galileu, Descartes, Newton e Faraday contemplam, lá embaixo, a figura desgrenhada que rabisca em meio à desordem circundante. Em 1868 Mendeleiev estava debruçado sobre o problema dos elementos químicos. Eles eram o alfabeto de que a língua do universo se compunha. Àquela altura, 63 diferentes elementos químicos haviam sido descobertos. Iam desde o cobre e o ouro, que eram conhecidos desde tempos pré-históricos, ao rubídio, que fora detectado recentemente na atmosfera do Sol. Sabia-se que cada um desses elementos consistia de átomos diferentes, e que os átomos de cada elemento apresentavam propriedades singulares próprias. No entanto, havia-se descoberto que alguns deles possuíam propriedades vagamente similares, o que permitia classificá-los conjuntamente em grupos. Sabia-se também que os átomos que compunham os diferentes elementos tinham pesos atômicos diferentes. O elemento mais leve era o hidrogênio, com peso atômico de 1. O elemento mais pesado conhecido, o chumbo, tinha um peso atômico estimado em 207. Isso significava que era possível arrolar os elementos de forma linear segundo seus pesos atômicos ascendentes. Ou reuni-los em grupos com propriedades semelhantes. Vários cientistas haviam começado a suspeitar de que existia uma ligação entre esses dois métodos de classificação –alguma estrutura oculta em que todos os elementos se baseavam.Na década anterior, Darwin descobrira que todas as formas de vida progrediam por evolução. E dois séculos antes Newton descobrira que o universo operava segundo a gravidade. Os elementos químicos eram a cavilha entre os dois. A descoberta dessa estrutura faria pela química o que Newton fizera pela física e Darwin pela biologia. Revelaria o esquema do universo. Mendeleiev estava ciente da importância de sua investigação. Aquele poderia ser o primeiro passo rumo à descoberta, em séculos futuros, do segredo último da matéria, o padrão sobre o qual a própria vida se fundava, e talvez até as origens do universo.Sentado à sua mesa sob os retratos dos filósofos e dos físicos, Mendeleiev continuava a ponderar esse problema aparentemente insolúvel. Os elementos tinham diferentes pesos. E tinham diferentes propriedades. Podia-se enumerá-los e podia-se agrupá-los. De algum modo,simplesmente tinha de haver uma ligação entre esses dois padrões. Mendeleiev era professor de química na Universidade de São Petersburgo, sendo famoso por seu conhecimento enciclopédico dos elementos. Conhecia-os como um diretor de escola conhece seus alunos – os voláteis insociáveis, os valentões, os maria vai com as outras, os que ficam misteriosamente aquém do esperado e os perigosos que é preciso vigiar. No entanto,por mais que tentasse, continuava incapaz de discernir qualquer princípio norteador em meio àquele turbilhão de características. Tinha de haver um em algum lugar. O universo científico não podia se basear simplesmente num ajuntamento aleatório de partículas singulares. Isso seria contrário aos princípios da ciência.A.A. Inostrantzev, colega de Mendeleiev que foi lhe fazer uma visita no dia 17 de fevereiro de 1869, deixou uma descrição desse encontro. Ela é um tanto fantasiosa e colorida pela retrospecção, mas fornece alguns detalhes de bastidor. O próprio Mendeleiev também forneceu vários relatos (um tanto discrepantes) do que andava fazendo e pensando naquela ocasião.Ao que parece, por três dias, quase incessantemente, Mendeleiev estivera quebrando a cabeça com o problema dos elementos. Mas tinha consciência de que o tempo estava se esgotando. Naquele mesmo dia deveria pegar o trem da manhã na Estação de Moscou com destino à sua pequena propriedade rural na província de Tver. O professor de química tinha um encontro com a Cooperativa Econômica Voluntária de Tver. Iria falar para uma delegação local de queijeiros, aconselhá-los sobre métodos de produção, ao que se seguiria, por três dias, uma inspeção de granjas locais. Seu baú de madeira de viagem já fora feito e deixado n o vestíbulo. Pela janela de seu gabinete podia-se ver o trenó puxado a cavalo esperando na rua,o cocheiro todo enrolado batendo o pé na neve, o miserável cavalo resfolegando plumas brancas no ar frígido.Mas os criados não teriam ousado perturbar Mendeleiev. Seu mau gênio era notório. Sabia se que por vezes se irritava a ponto de dançar literalmente de fúria. Mas o que aconteceria se perdesse o trem?O psicólogo russo da descoberta científica B.M. Kedrov, e outros comentadores de Mendeleiev, especularam que a ideia premente do trem que ele tinha de pegar teve um efeito na sua mente. Pode ter sido isso que o induziu a um voo de inspiração devaneadora... Nas longas viagens de São Petersburgo a Tver, Mendeleiev frequentemente matava o tempo jogando paciência. Depois de instalar seu baú de madeira sobre os joelhos, baixava o baralho com as cartas viradas para baixo.Enquanto as bétulas prateadas, os lagos e os morros cobertos de mata deslizavam pela janela,ele começava a virar as cartas, três a três. Quando chegava aos ases, removia-os um após outro, colocando cada naipe em linha no alto do baú: copas, espadas, ouros, paus. Depois continuava virando as cartas – e, uma por uma, elas apareciam. Rei em copas, Rainha em copas, Rei em ouros, Valete em copas... Lentamente os naipes começavam a descer pelo baú.Dez, nove, oito... Naipes, números descendentes. Era exatamente o que se passava com os elementos com seus grupos e números atômicos ordenados!Em algum momento durante a manhã, Mendeleiev deve ter chamado da porta de seu gabinete e pedido a um dos criados para dispensar o trenó que o aguardava. Ele deveria informar ao cocheiro que o professor Mendeleiev iria pegar o trem da tarde. Mendeleiev voltou à sua mesa e começou a revirar as gavetas. Finalmente tirou um maço de fichas brancas. (Enquanto o fazia, talvez tenha ouvido o tilintar das sinetas do trenó puxado acavalo que desaparecia na distância baça, acolchoada de neve.) Uma por uma, Mendeleiev começou a escrever nas superfícies em branco das fichas. Primeiro escrevia o símbolo químico de um elemento em letra de forma, depois seu peso atômico e finalmente uma curta lista de suas propriedades características. Depois de preencher 63 cartões, espalhou-os sobre a mesa com a face para cima.Começou a fitar os cartões, cofiando meditativamente as pontas da barba. Um longo momento se prolongou em minutos a fio enquanto ele permanecia concentrado no mar de cartões à sua frente, sua mente seguindo trilhas de pensamento e semi pensamento, esquecido do mundo. Nem assim conseguiu discernir algum padrão geral.Cerca de uma hora mais tarde, decidiu tentar uma abordagem diferente. Juntou as fichas e começou a dispô-las em grupos. Mais uma hora eterna; agora suas pálpebras estavam começando a pulsar de exaustão. Finalmente, desesperado, decidiu tentar o caminho óbvio,dispondo os cartões na ordem ascendente de seus pesos atômicos. Mas isso não poderia levara coisa alguma. Todo mundo já o tentara. Ademais, o peso era apenas uma propriedade física.O que estava procurando era um padrão que unisse as propriedades químicas. A essa altura Mendeleiev estava começando a cabecear, a cair sobre os cartões enquanto se controlava, à beira do sono. Parece que se deu conta do trenó puxado a cavalo à espera do outro lado da janela. Ainda estava lá? Ou tinha voltado? Já? Era hora de pegar o trem da tarde? Esse era o último, não poderia perdê-lo de maneira alguma.Ao passar os olhos mais uma vez pela linha de pesos atômicos ascendentes, Mendeleiev percebeu de repente algo que lhe acelerou o pulso. Certas propriedades similares pareciam se repetir nos elementos no que se revelavam ser intervalos numéricos regulares. Isto era alguma coisa! Mas o quê? Alguns dos intervalos começavam com certa regularidade, mas depois o padrão parecia claramente ir sumindo. Apesar disso, Mendeleiev logo se convenceu de que estava à beira de uma realização de vulto. Havia um padrão definido em algum lugar ali, mas ele simplesmente não conseguia agarrá-lo de fato... Momentaneamente vencido pela exaustão,Mendeleiev se debruçou na mesa, pousando a cabeça desgrenhada nos braços. Adormeceu quase imediatamente, e teve um sonho.  

O sonho de MendeleievOnde histórias criam vida. Descubra agora