Sensações

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 Já se passaram duas noites. Eu estava sobrevivendo a pão e pinga.

 Não posso me julgar por isso, afinal descobri que estou presa no quinto dos infernos por algo que não sei se fiz ou não...

Minhas noites se passavam em claro porque afinal, não sei se é possível dormir no inferno.
Minhas lembranças ainda são muito confusas também... Lembro-me muito da minha escola, quando era jovem... Dos meus amigos, das minhas incertezas, do meu primeiro beijo e de toda uma felicidade que não sei mais se é real, se eu realmente a tive em mãos.

O engraçado é que não me recordo dos rostos. Não consigo ver o rosto dos meus pais ou do meu irmão. Meu pequeno e doce irmão... Onde estarão agora? E o que estão pensando de mim?

Revirei pela cama de madeira que rangia a cada movimento. Estava no meu quartinho escuro, banhando por trevas. Não havia uma única luz que entrasse pela janela a qual sinceramente não faço ideia do por que existir... O único ponto iluminado era um lampião sujo de lama com a luz fraca de vela que insistia em permanecer acesa o tempo inteiro e nunca, nunca mesmo derretia.

Me levantei num susto. Estava completamente perdida naquela situação. Afinal, onde estava o diabo vestindo preto e me jogando num caldeirão vermelho de óleo fervendo? E as labaredas do inferno? E os demônios devorando minhas vísceras?
Se este é o inferno porque afinal sinto fome, sede e o pior: Ainda tenho um hotelzinho de beira de estrada que me fornece algum alimento e bebida?

Não sei quem inventou esse lugar mas meu Deus, obrigada.
É bem melhor que torrar eternamente no mármore do inferno.
Embora meus amigos góticos discordassem de mim se os visse.

Passei algum tempo olhando pela janela tentando ver naquele mar de lama algum sinal de civilização. Minutos depois cansada de me iludir, resolvi descer para o saguão principal e comer um pãozinho diário.
Cada passo que eu dava nos degraus era um rangido diferente e sofrido. Tudo neste lugar empoeirado parece ranger. Madeira podre. Por 20 reais á mais aposto que compravam algo de mais qualidade.

"Poderia me dar um pão por favor?" pedi á velha senhora (escrava).
Ela jogou o mesmo em mim, mais uma vez sem me encarar.

Suspirei de nervoso, girei e fui em direção á uma das mesinhas que sempre estavam ocupadas pelos mesmos grupos de pessoas. Colegiais alegres e o mendigo e seu amigo imaginário.

Fiquei quieta olhando meu pão a cada mordida que dava observando o quanto era amassado... Lugarzinho nojento.

Para minha surpresa uma chuva bem fininha começou a cair e me tirou de meus pensamentos. As gostas batiam no vidro da janela rapidamente e formavam desenhos diversos. Passei um bom tempo observando aquela chuva calma que lavava meu coração. O céu ainda não tinha nuvens, nem estrelas e nem a lua para me confortar. Mas pelo menos, tinha a chuva...

Me animei depois de um tempo observando aquilo. Era a coisa mais humana que já vi neste lugar portanto resolvi me arriscar.
Andei lentamente em direção ao guarda que estava sempre em sua posição: Ele continuava olhando o céu, como se a chuva não lhe dissesse nada.

"Onde fica a próxima estalagem?" perguntei trêmula.
"Sei lá. Você encontrou esta é porque algum crédito tem com o capeta" disse rindo alto.
"Existem outras pessoas por aqui? Com quem eu possa conversar?"
"Sério? Quer mesmo bater um papo de colega com o pessoal que mora aqui?" agora seu tom era surpreso e nervoso.
"Eu gostaria de conversar comigo se fosse outra pessoa. Sou educada e inteligente. Tenho certeza que poderia encontrar uma solução para essa imundice de lugar".
"O inferno nunca foi lugar para humildes. Por isso, é o inferno" riu novamente.
"Onde fica a porra da outra estalagem?"
"A porra da outra estalagem..." disse enquanto me encarava aproximando seu rosto do meu e me consumindo com seu olhar absurdamente doentio e cheio de maldade "está tomando um banho de lama e bosta de cavalo".
"Tem cavalo por aqui?" minha voz soprou tão fina que até me assustei.
"Temos alguns animais de estimação. Eles são bons para tirar o tédio"
"Animais sempre animam as pessoas. Os cachorros sempre fazem um ótimo serviço social ajudando pessoas enfermas"
"Não é bem assim que fazemos, mas você quem sabe" ele riu ainda mais agora. Um riso longo, cheio de ódio.
"Existe mais algum lugar que possa ir, por aqui?"
"Por que? Suas pernas pararam de funcionar, garota?"
"Eu não sou uma garota".
"Desculpe. Suas pernas pararam de funcionar, vagabunda?"

Minha mão se fechou no mesmo minuto. A vontade de socar ele era absurda. Eu estava louca para afundar aquele nariz arrogante em pé naquela cara feia. Mas respirei fundo, pois sabia que para levar um furo de seu tridente não precisava fazer muito.

"Em qual direção minhas pernas devem caminhar?"
"Vá pro Sul".
"Vá pro Sul. Isso é tudo? Não podia ter dito antes?" indaguei extremamente revoltada.
"Aqui neste lugar, você precisa sempre fazer as perguntas certas. Se agir como uma garotinha medrosa vão apenas te devorar viva. É legal zoar com os novatos. São sempre burros e inúteis á princípio". Ele voltou seu rosto pro céu e parecia não estar mais disposto á conversar.

Suspirei um pouco aliviada em saber que ele não estava prestes a me devorar viva. Olhei bem para a porta que estava sempre aberta e exibindo um deserto de lama e escuridão. Era isso, se eu queria respostas não podia permanecer parada. Afinal, não se vive apenas de pão amassado e pinga, certo?  

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