IV

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Durante os sete anos de faculdade, Daniel aprendeu muitas coisas. Devorou livros que o número de páginas chegava à casa dos milhares e se inteirou em diversas pesquisas acadêmicas. Vários professores o disputavam como pupilo. Destacou-se por suas notas impecáveis e seus trabalhos com temas inovadores.

Mas além de todo o conteúdo programático da universidade e assuntos associados, Daniel também aprendeu sobre muitos conceitos da vida adulta em geral. Desenvolveu seu caráter em meio às diversas personalidades que conheceu, amadureceu em vários sentidos, bebeu muita cerveja, muita vodca, muito uísque, vomitou cerveja, vodca, uísque, fumou um ou outro cigarro – incluindo alguns de maconha –, fez sexo com mulheres diferentes, quase começou a namorar duas vezes, conheceu a Oktoberfest, festejou com os amigos e com seu pai. Enfim, Daniel fora um comum estudante universitário aproveitando essa boa fase da vida.

Durante aquele período, o jovem acadêmico de Medicina da UFPR passou a morar sozinho, numa quitinete perto do centro da cidade. Márcio, seu pai, conheceu uma moça muito agradável – Luíza –, com a qual divide um apartamento até os dias atuais.

Próximo do fim do curso, Daniel já havia cativado muitos professores. Um deles em particular, o Dr. Roberto Zagollin – renomado médico e um dos fundadores do Hospital e Maternidade Santa Joana de Curitiba, possui doutorado na área de concentração de clínica cirúrgica –, recomendou Daniel à grade de clínicos gerais do seu hospital. O acadêmico seria contratado já durante sua residência e poderia permanecer no cargo caso quisesse. O doutor Roberto viu em Daniel personalidade e capacidade necessárias para administrar um setor inteiro de clínica cirúrgica. O rapaz demonstrou excelente desempenho no estudo de procedimentos cirúrgicos, principalmente para transplantes. E não era novidade na época que o país inteiro carecia de um sistema bem estruturado para transplantes de órgãos. Porém, antes de atribuir tamanha responsabilidade ao formando, Roberto o encaixou na clínica geral para observar a sua competência diante de um trabalho árduo que dependia de muita dedicação.

Então Daniel havia decidido. Trabalharia na clínica geral até agosto para satisfazer o Dr. Roberto Zagollin. Enquanto isso, o setor de clínica cirúrgica seria completamente reformado. Daniel continuou seus estudos em casa, mesmo trabalhando na clínica e esses estudos agregaram muito ao novo layout reformulado do setor o qual ele gerenciaria futuramente.

Conseguiu juntar um bom dinheiro já durante os primeiros meses na clínica e alugou um apartamento maior. Um dos quartos do apartamento era exclusivo para estudos; possuía estantes com diversos livros – a maioria voltados para procedimentos cirúrgicos – e uma mesa de cirurgia que Roberto havia lhe emprestado para Daniel realizar alguns estudos práticos em moldes. Pendurada à lateral da mesa, estava uma pequena cesta metálica com nichos separados contendo diferentes tipos de ferramentas cirúrgicas – bisturis, tesouras, agulhas, entre outros. Na parte externa dessa cesta, um selo de alumínio – parecido com um daqueles dog tags do exército – continha o texto Propriedade do Hospital e Maternidade Santa Joana, Curitiba. Cód. 9967-3.

Daniel tinha um grande futuro pela frente. Dinheiro não seria mais problema. E talvez ele fosse capaz de fazer algo de bom ao mundo, afinal. Futuro este que compensaria seus erros do passado, pensava.

Mesmo assim, por muito tempo foi assombrado pelo fantasma de Ariel. Nunca pôde vê-lo, mas acordava suando frio desesperado no meio da madrugada, olhando em volta para as quatro paredes do quarto, esperando que algo surgisse. Algo que ele sentia. A presença do homem que ele assassinara a sangue frio.

Morto é morto.

Mas Ariel não parecia morto para Daniel. Não. Parecia que, depois de tê-lo matado, aquele miserável estava cada vez mais presente em sua vida, amaldiçoando-a a cada instante.

Daniel sempre fora um rapaz que acreditava na ciência, mais que tudo. Não queria admitir nem a si mesmo sobre as sensações que tinha ao se lembrar da morte que causou. E não precisava admitir nada. Afinal, seu futuro era brilhante. Seria a pessoa mais jovem da cidade a chefiar praticamente um departamento inteiro de um hospital. E nada além de seu esforço e dedicação havia alcançado aquela oportunidade para ele. Daniel sabia que era capaz. Estava determinado. Foda-se Ariel, pensou. Foda-se o passado. Eu prevaleci e eu vou fazer o certo a partir de agora. Sempre.

Apesar disso, Daniel jamais esperaria se reencontrar com ela.

Loana, por que você teve de aparecer?, ele se perguntava. E com uma filha. Uma linda filha, a única contribuição positiva ao mundo daquele ser desprezível com o nome de Ariel Carls.

Quem diria que, em seus últimos dias como clínico geral, ele se depararia com tamanha revelação.

E agora? O que Daniel faria?

Ele estava no banheiro da sua sala. Depois que Loana, Marta e a pequena Ísis haviam ido embora, ele correu ao banheiro, enjoado. Vomitou todo o seu almoço em meio a soluços e arquejos. Olhou-se no espelho, boquiaberto. Se apoiava com as mãos sobre o lavatório.

Quem é você?, pensou.

Fechou os olhos. Em meio à escuridão, enxergou o entristecido rosto de uma criança. Era Ísis. Atrás do rosto, Ariel sorria para ele. Quanto mais tempo Daniel mantinha os olhos fechados, mais sentia o fantasma do falecido se aproximando dele, a ponto de soltar uma gargalhada. E quanto mais Ariel sorria, mais a menina entristecia, até chorar.

Ariel estava cada vez mais perto. E sorria. Começou a rir. Rir de Daniel. Não parava de rir. Estava chegando mais perto. Seus olhos ficavam vermelhos.

Maldito. Maldição!

Ele chegava mais perto a cada segundo. Apesar de o ver rindo, Daniel não ouvia um ruído sequer.

Não posso, não posso mais. chega, por favor!

Daniel abriu os olhos. Viu Ariel o encarando sério no espelho e deu um pulo para trás. Quando se recompôs, voltou à posição que estava. Olhou no espelho novamente e viu...

Ele mesmo.

Lágrimas silenciosas escorreram pelo seu rosto.

O que faço agora?

Sentia a presença de Loana novamente em sua vida como um choque que alguém levaria se encostasse a mão molhada numa tomada antiga. Não só isso; sentia que era seu destino reencontrar Loana. Sua maldição. Sentia que jamais poderia fugir e sumir de vista de seu fantasma particular. Sentia estar sendo observado e que sua privacidade fora estuprada com muita violência. Sentia que tinha que pagar pelo que fez.

Enquanto disfarçadamente indagava a Loana sobre Ariel, Daniel só se lembrava do sangue. Sangue e ossos. O cérebro espalhado pelo chão. O gosto metálico...

( !!! DELICIOSO GOSTO DE MORTE !!! )

Perdeu a noção do espaço e do tempo. Já não era mais um homem da ciência, mas sim uma criança órfã abandonada no meio de um campo de batalha.

E agora?

UtópicoWhere stories live. Discover now