Ensaio sobre ela

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Cidade do México, Camila.


A maioria das histórias começava com um "era um vez"; os contos infantis traziam essa tradição, afinal, para uma boa narrativa, sempre há um determinado ponto de partida.

Isso tinha alguma importância?

Para Camila, era irrelevante. Não se enxergava como amante de grandes acontecimentos fictícios; e, de fato, não era. Ao longo dos anos, a realidade absoluta era o que vivia e, por vezes, escondia sua própria biografia com afinco. No mundo onde foram desenvolvidas grandes obras literárias, o desinteresse pela fantasia era intrínseco; nunca sonhara em amar como Julieta, tampouco, ser amada como Cleópatra.

No entanto, estava deitada sobre uma cama de solteiro, com um pequeno corpo acomodado ao seu, parcialmente de lado, enquanto lia lentamente como Rapunzel cantava do alto de uma janela, proporcionando, coincidentemente, ao Príncipe, uma linda melodia. Sua irmã, com os olhos pequenininhos e atentos, a observava fixamente, como se estivesse submersa em um mundo encantado, no qual, as expressões se tornavam protagonistas.

Depois de mais algumas páginas viradas, cedia, por fim, o sono da garota. Camila olhou rapidamente para a irmã e ergueu a mão direita até que os dedos finos tocassem a bochecha gordinha. Os olhos encheram de lágrimas; como todas às vezes que fazia aquilo. Ficou assim até que explorasse cada traço daquele rosto e aproximou-se um pouco mais, depositando um beijo no centro da testa.

Sentou-se na cama e cuidadosamente fechou o livro de contos infantis, colocado-o em cima da cabeceira, ao lado da cama. Saiu daquele cômodo vagarosamente, direcionando-se à sala logo em seguida. Assim que parou no limite entre o corredor e a sala, encarou os olhos de uma mulher sobre si.

- Dormiu – andou até o sofá branco e sentou, pegando a pequena bolsa que estava ali, confirmando se tudo estava nos conformes. – Ela tem tido alguns pesadelos, então qualquer barulho, preciso que verifique se está tudo bem.

- Não se preocupe, Camila, eu vou colocar um pequeno colchonete ao lado da cama e dormirei esses dias lá.

- Você sabe que não precisa fazer isso – levantou-se fazendo com que a hóspede também levantasse.

- Eu sei, Mila. É por isso que eu estou aqui. Vá resolver suas questões com tranquilidade, cuidarei da sua irmã como se fosse a minha.

Camila afirmou imperceptível para Allyson no centro da sua sala. Sem conseguir falar mais nada, virou-se de costas, sabendo que a engenheira ainda a olhava.

Com a amizade rompida por mais de dois meses, a ex-produtora imaginava que Ally hesitaria em ajudá-la com o que fosse, no entanto, aparecera no México algumas dias depois de tê-la encontrado em Paris.
Era uma coisa muito grande. Tão grande, que assim que a porta fora fechada, sentiu que era seguro seguir em frente.

De certa forma, outro sentimento a acolhia todas às vezes que saía de casa: sentimento de saudade. Uma saudade entorpecida tomava conta quando se afastava de Sofia. Esse era, de fato, um dos principais acontecimentos que ainda não conseguia lidar.

Os olhos estavam perdidos nos prédios ao redor, enquanto atravessava a rua, notando como um carismático casal se encolhia próximos por causa de um frio atípico naquela noite. Tirou do bolso traseiro da calça o maço de cigarros e arrancou um de lá com habilidade. O processo de levá-lo entre o dedo indicador e médio; a mão formando uma concha, era quase poético para si.

Duas pessoas passaram por ela ao mesmo tempo em que o fogo queimava o tabaco picado. Seus passos eram lentos, mas o trago que dera fora tão prolongado quanto uma respiração longa, assemelhando-se a um suspiro quando a fumaça saía.

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