Prólogo

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A Ala tinha ido à biblioteca em busca de esperança. Caminhou entre as estantes, com uma mão no bolso enquanto a outra passava pelas lombadas rachadas dos livros preferidos e pela poeira acumulada nos menos queridos. O último cidadão tinha saído horas antes, mas a Ala continuava de óculos escuros e com uma echarpe bem enrolada em volta da cabeça e do pescoço. A penumbra da biblioteca fazia sua pele negra parecer escura como a de um humano, mas as penas que tinha no lugar de cabelos e o pretume absoluto de seus olhos, grandes e brilhantes como os de um corvo eram puro Avicen.

Ela gostava de livros. Eram uma fuga das responsabilidades, dos outros membros do Conselho de Anciãos que recorriam a ela, a única Profeta viva, em busca de orientação, da guerra que acontecia há mais tempo do que a maioria era capaz de lembrar. A última grande batalha havia acontecido mais de um século antes, mas a ameaça de violência permanecia, e cada lado esperava um deslize do outro para que aquela pequena fagulha se transformasse em uma chama além do controle de qualquer um. A dança vagarosa dos dedos da Ala foi interrompida quando um título chamou sua atenção: Um conto de duas cidades. Seria bom ler sobre a guerra dos outros. Talvez a fizesse esquecer a sua própria. Ela estava prestes a tirar o livro da estante quando sentiu um puxão leve, como uma pena presa no bolso do casaco.

A mão da Ala agarrou rápido o punho do ladrão. Uma menina magricela e pálida segurava firme o porta-moedas da Ala. Os olhos castanhos dela fitaram o punho exposto da Ala, sem piscar.

— Você tem penas — disse a menina.

A Ala não conseguia se lembrar a última vez que um humano havia visto sua plumagem e ficado tão calmo. Então soltou a menina e puxou a manga sobre o antebraço, endireitando o casaco e a echarpe para esconder o resto do corpo.

— Pode devolver minha carteira? — Não era uma carteira exatamente. No lugar do dinheiro, havia um pó preto e fino que zunia com energia na mão da Ala, mas a menina não precisava saber disso.

A ladra a encarou.

— Por que você tem penas?

— Minha carteira, por favor.

A menina nem se mexeu.

— Por que você está usando óculos escuros aqui dentro?

— Carteira. Agora.

A menina olhou para a bolsinha que tinha na mão, pareceu refletir por um instante, e voltou a olhar para a Ala. Ainda assim não abdicou do item.

— Por que está usando esse lenço se estamos no verão?

— Você é muito curiosa para uma garotinha — a Ala disse. — E já é meia-noite. Você não devia estar aqui.

Sem hesitar nem por um segundo, a ladra respondeu:

— Nem você.

A Ala não conseguiu conter o sorriso.

— Touché. Onde estão seus pais?

A menina ficou tensa, olhando de um lado para o outro em busca de uma saída.

— Não é da sua conta.

— Que tal um acordo? — a Ala perguntou, agachando para ficar na altura dos olhos da menina. — Você me diz como veio parar nesta biblioteca sozinha, no meio da noite, e conto para você por que tenho penas.

A menina a analisou por um momento com uma prudência que não condizia com sua idade.

— Eu moro aqui. —Arrastando a ponta do tênis branco e encardido no chão de linóleo, a menina observou a Ala por sob densos cílios castanhos e acrescentou: — Quem é você?

Um monte de perguntas em um pacote tão pequeno. Quem é você? O que é você? Por que está aqui? A Ala deu a única resposta possível:

— Sou a Ala.

— A Ala? — A menina revirou os olhos. — Não me parece um nome verdadeiro.

— Sua língua humana nunca conseguiria pronunciar a minha — disse a Ala.

Os olhos da menina se arregalaram, mas ela sorriu, com hesitação, como se não estivesse muito acostumada a fazer isso.

— Então como devo te chamar?

— Pode me chamar de a Ala. Ou Ala, para encurtar.

A pequena ladra franziu o nariz.

— Não seria o mesmo que chamar um gato de "gato"?

— Talvez — disse a Ala. — Mas existem muitos gatos no mundo, e só uma Ala.

A resposta pareceu satisfazer a menina.

— Por que está aqui? Nunca vi ninguém na biblioteca à noite antes.

— Às vezes, quando estou triste, gosto de ficar perto desses livros — a Ala respondeu. — Eles são bons para fazer as pessoas esquecerem todos os problemas. É como ter um milhão de amigos embrulhados em papel e rabiscados de tinta.

— Você não tem amigos normais? — a ladra perguntou.

— Não. Nada parecido. — Não havia melancolia na resposta da Ala. Era apenas a verdade, desprovida de ornamentos.

— Isso é triste. — A menina pegou na mão da Ala, acariciando com o dedinho as penas delicadas dos ossos de seus dedos. — Também não tenho ninguém.

— E como uma criança conseguiu passar despercebida por todos que trabalham aqui?

— Sei me esconder muito bem — a menina disse, com certa timidez. — Já tive que fazer muito isso. Em casa, quero dizer. Antes de vir para cá. — Com um aceno de cabeça determinado, ela continuou: — Aqui é melhor.

Pela primeira vez desde que a Ala conseguia se lembrar, lágrimas começaram a se formar em seus olhos.

— Desculpe por pegar sua carteira. — A menina segurou o porta-moedas diante da Ala. — Fiquei com fome. Se soubesse que você estava triste, não teria pegado.

Uma pequena ladra com consciência. Será que as surpresas nunca terminavam?

— Qual é o seu nome? — a Ala perguntou.

A menina abaixou os olhos, mas não soltou a mão da Ala.

— Não gosto dele.

— Por que não?

— Não gosto das pessoas que me deram ele — a menina disse, dando de ombros.

O coração da Ala ameaçou se desfazer em cinzas.

— Então talvez você mesma devesse escolher um.

— Posso fazer isso? — a pequena ladra perguntou, desconfiada.

— Você pode fazer tudo o que quiser — a Ala respondeu. — Mas pense com cuidado. Nomes não são coisas que devem ser apressadas. Há poder nos nomes.

A menina sorriu, e a Ala soube que não retornaria sozinha ao Ninho aquela noite. Ela tinha ido à biblioteca em busca de esperança; em vez disso encontrara uma criança. Ela levaria muitos anos para perceber que as duas coisas não eram tão diferentes.

A Profecia Do Pássaro De FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora