Dois

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DOIS TIPOS DE PESSOAS ACAMPAVAM na Biblioteca Pública de Nova York tão tarde da noite. Os estudiosos — estudantes universitários viciados em cafeína; candidatos a doutorado obsessivamente meticulosos; acadêmicos ambiciosos em busca de um título. E as pessoas que não tinham para onde ir — gente que buscava consolo no almíscar reconfortante dos livros antigos e nos sons calmos de outros seres humanos respirando, virando páginas e se espreguiçando nas velhas cadeiras de madeira. Pessoas que não queriam se sentir sozinhas quando haviam sido deixadas sozinhas. Pessoas como Echo.

Ela se move pela biblioteca como um fantasma, com passos mais silenciosos que um sussurro sobre os degraus de mármore. Era tarde o bastante para ninguém se dar ao trabalho de levantar os olhos dos livros para notar uma jovem vestida de preto dos pés à cabeça andando furtivamente por locais onde não deveria estar. Echo tinha estabelecido havia muito tempo uma rota que desviava dos funcionários que contavam os minutos até o fim do expediente. Ela não precisava se preocupar com câmaras de segurança. Os bibliotecários americanos llutavam para proteger a privacidade de seus leitores, então a biblioteca era uma zona livre de câmaras. Era um dos motivos por ela ter escolhido fazer daquele local seu lar.

Ela passou pelas estantes estreitas da biblioteca, inspirando o cheiro familiar de livros velhos. Ao subir a escadaria escura que levava ao seu quarto, o ar ficou mais espesso devido à magia. Os bloqueios que a Ala tinha ajudado Echo a criar a empurravam, mas a resistência era fraca. Eles eram projetados para reconhecê-la. Se qualquer outra pessoa tivesse deparado com a escadaria, teria voltado, lembrando de ter deixado o fogão ligado ou estar atrasado para uma reunião.

No alto da escadaria havia uma porta bege e simples como a de qualquer armário de serviço, mas que também tinham sua própria magia. Echo tirou o canivete suíço da mochila. Pressionou a ponta da pequena faca no dedo mindinho e observou uma gota de sangue se formar.

- Por meu sangue. - sussurrou.

Ela encostou a gota escarlate na ponta e o ar crepitou com eletricidade estática, arrepiando os pelinhos finos de sua nuca. Ouviu-se um clique baixo e a porta destravou. Como fazia todas as vezes que entrava no quarto apertado, transbordando de tesouro que havia libertado no decorrer dos anos, ala chutou a porta e disse para ninguém em particular:

- Querido, cheguei!

O silêncio em resposta foi bem-vindo depois da sinfonia aguda de Taipei e das multidões cacofônicas na hora rush de Nova York. Echo deixou a mochila no chão, ao lado da escrivaninha que havia salvado da pilha de reciclagem da biblioteca, e desmoronou sobre a cadeira. Acendeu as luzinhas penduradas pelo quarto, deixando o espaço aconchegante com um brilho caloroso.

Diante dela estava o burrito com que sonhava, cercado pelas quinquilharias que decoravam todas as superfícies disponíveis no quarto. Havia pequenos elefantes de jade de Phuket. Geodos de minas de a mestista da Coreia do Sul. Um ovo Fabergé original, incrustado de rubis e enfeitado com ouro. Pilhas de livros cercavam tudo, em todos os lugares possíveis, empilhados uns sobre os outros em torres bambas. Alguns Echo já tinha lido dezenas de vezes, outros, nenhuma. A mera presença deles era um conforto. Ela os acumulava com a mesma avidez que acumulava seus outros tesouros. Seu eu de sete anos de idade havia decidido que roubar livros era moralmente condenável, mas como os livros não haviam saído da biblioteca — foram apenas reacolocados — não se tratava tecnicamente de um roubo. Echo olhou para o seu mar de publicações e uma única expressão lhe veio à mente: tsundoku.

Era a palavra japonesa para o ato de deixar os livros empilhados sem lê-los. Palavras eram outra coisa que Echo acumulava. Ela havia começado a coleção muito antes de ir à biblioteca pela primeira vez, quando ainda morava na casa da qual preferia não se lembrar, com uma família que preferia esquecer. Na época, seus únicos livros eram de enciclopédias ultrapassadas. Ela tinha algumas poucas coisas que eram dela, mas sempre teve as palavras. E agora tinha um quarto cheio de tesouros roubados, alguns mais comestíveis que outros.

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⏰ Última atualização: Dec 21, 2016 ⏰

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