Prólogo

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Ele chega naquela vizinhança calmamente, junto a si traz aqueles que tornou seus cachorrinhos. Homens e mulheres, jovens e idosos, até mesmo algumas crianças, sem a menor distinção. Eles estão presos à correntes, atados a coleiras como animais. Os gritos de dor, gemidos e o medo preenchem a atmosfera sombria. É como um desfile de raros espécimes e ele desfila orgulhoso, ostentando as correntes pesadas e brilhantes que talvez tivesse levado horas, dias, meses ou anos polindo enquanto arquitetava o melhor plano para manter cativos seus animaizinhos de estimação.

Ele os solta na calçada e uma ciranda macabra começa, onde em círculos e em movimentos desconexos os pobrezinhos caminham pé ante pé, sem saber ao certo para onde ir ou o que fazer, mas incapazes de resistir. Ele mistura-se entre seus bichinhos de estimação. No olhar o desprezo é intenso e o escárnio escapa por suas órbitas malignas. Com grunhidos e gemidos irritados ele monta o cenário, enquanto desliza por entre seus cativos organiza-os de forma a torná-los marionetes. Sua risada penetra os ossos com intensidade e a força que mantém a todos hipnotizados obriga-os a fazer suas vontades. Ele se diverte enquanto promove dor e sofrimento.

Do outro lado da rua, uma mulher, pequena demais para sua idade, com pernas tão curtas que poderiam ser comparadas à de uma menina de oito ou nove anos, abre os lábios com coragem para interceder com determinação:

- Senhor Jesus, neste momento quero colocar em Tuas mãos aquelas pessoas que estão na prostituição!

Ele percebe de imediato as intenções da pequenina e seu corpo começa a agitar-se incontrolavelmente. Aquilo seria demais para ele, palavras de uma mulher minúscula e obviamente indefesa o fazem afastar-se com rapidez. Há um grande portão enferrujado de um casarão abandonado, é para lá que ele corre e fecha-o atrás de si enquanto a pequenina continua seu clamor.

- Liberta, Senhor, agora! Em nome de Jesus! Eu quero colocar também nas Tuas mãos aquelas vidas, ó Pai, que não tem aonde morar, não tem o que comer!

A mulher está de olhos fechados, concentrada em seu clamor e com fé ardente emprega mais intensidade nas palavras, visivelmente crendo que será respondida. Ele não consegue desligar a mente daquelas palavras, cada verso, cada sílaba enfiam-se em seu cérebro como agulhas afiadas. Está ficando tonto e começa a percorrer seu jardim em visível agonia.

- Sustenta essas vidas! Em nome de Jesus! Que toda miséria venha cair por terra.

Ele apoia-se na grade enferrujada, seu corpo começa a demonstrar claros sinais de cansaço. Parece incrédulo de que naquele ambiente sujo e macabro, uma anã tenha a ambição de trazer alguma fantasia de esperança. Mas ele não pode ir ao seu encontro para mostrar que está perdendo tempo, pois uma bolha invisível envolve a mulher, mantendo-o distante.

- Ah, Senhor, quero colocar nas Tuas mãos o casamento. Restaura cada família agora neste momento. Renova a aliança de cada um deles. Oh, Senhor, esteja presente, meu Pai.

Maldição!! Ele precisa se afastar! Aquilo é demais para sua estrutura. Algo precisa ser feito para que aquela anã desgraçada cale a boca e os pensamentos dele estão confusos demais para ordenar qualquer coisa. Ele se afasta e esconde-se num beco escuro daquele jardim, tem luz demais e contra isso é difícil reagir e ele espera mais um pouco por sua vez.

- Eu também quero colocar nas Tuas mãos, ah, Senhor, aquelas pessoas que já conheceram a Tua palavra, mas viraram as costas para Ti.

Um homem de branco, forte e alto, com olhos amorosos e humildes responde àquela intensa intercessão. Ele encontra aquelas pessoas abandonadas em situação de sofrimento, e com intensa compaixão estende as mãos para elas, livrando seus corpos e mentes daquele torpor incontrolável.

- Em nome de Jesus, liberta Senhor! Transforma essas vidas! Abre os olhos espirituais da Tua igreja! E abra os ouvidos, Senhor! Eu coloco essas vidas nas Tuas mãos, Senhor! Em nome de Jesus!

Enquanto o homem de branco oferece algum consolo àquelas pessoas subjugadas, livrando-as pouco a pouco das amarras, ele esgueirasse pela parede do beco escuro e entra no casarão abandonado. É necessário algum planejamento para mudar aquela situação criada pela nanica intrometida, e ele tinha o dom da paciência. Percorre rapidamente os corredores escuros e sujos, subindo rapidamente os degraus da escadaria até alcançar a varanda da sacada, onde poderá melhorar sua percepção e visualizar o ambiente. Talvez com um pouco de distância física ele consiga deixar de ser afetado por aquela ladainha irritante. Ela finalmente cala a boca e ele automaticamente recupera sua vitalidade. É seu momento. Ele inclina-se sobre as grades de proteção da varanda e volta sua atenção para o homem de branco que ainda perde tempo em consolar seus cachorrinhos.

- Ora, ora, ora! Santo de Israel! - Ele grita em alta voz. - O que fazes tu aqui, hein?

- Eu vim buscar e salvar aquele que estava perdido. - O homem responde sem dar-lhe muita atenção.

- Mas aqui você vai encontrar uma prostitutazinha, um casal de drogados.. - Ele enumera os defeitos de seus bichinhos imundos. - Uma mendiga morta de fome e um crente sem compromisso. - Caminha de um lado para o outro e joga os braços para o alto em claro desdém. - O que você quer com eles, hãm?

O homem de branco não se deixa intimidar e percorre o olhar por todas aquelas pessoas sofridas e sem esperança antes de responder com firmeza.

- Satanás, os são não precisam de médicos, mas sim os doentes e enfermos.

- Belo discurso, não? - Ele provoca e com uma das mãos apoiada na cintura lança o desafio em tom debochado. - Isso quer dizer que irá descer do alto e sublime trono, irá tocar as Suas mãos puras e santas nos meus cachorrinhos sujos, é? - Ele grita a última palavra com enfase demasiada.

- Se for preciso sim!

O homem de branco grita com autoridade e faz com que o chão da varanda estremeça, obrigando um Satanás assustado a dar um passo para trás.

- Mas ainda há santos em minha presença. - O homem de branco continua. - Servos dispostos a me honrar, servos dispostos a me seguir, servos que não são covardes. - O amoroso homem aproxima-se da anã que continua parada na calçada em silêncio contemplando aquele lugar. - E estes, eu ajudarei com muito prazer.

- Eis me aqui, Senhor! - Ela brada corajosamente. - Usa-me!

Da varanda Satanás estufa o peito em clara arrogância.

- Então vá! Use a tua serva!


O Jardim do Inimigo - CIA NISSIOnde histórias criam vida. Descubra agora