ANNE CAROLINE
"Na minha boca profana quando ela se espasma insana, e para ver e pasmar que corpo ligeiro, frágil, que uma serpente mais ágil em meus braços se enroscar!...
Musset
Alvoroço, chuva fria, fina, fiando, feito fio, a face do vento no porto. Os navios, as barcaças, atracando-se. Uma voz, no alto-falante, anunciando a partida, a chegada, tudo sobre aquele movimentar de marujos, estivadores, passageiros; e ela ali no meio daquele povo, um mundão de gente; ela, ali, perdidamente perdida no achar-se estranha, estrangeira em tudo; recém chegada, ela e aquela menininha loura, tísica, de olhos azuis, cabelos encaracolados, sapatinhos pretos, envernizados, o vestidinho branco de bolinhas vermelhas.
O porto, o porte, o parto, o pânico, uma jovem mulher, agora, contraindo-se de dor, de cólica; os transeuntes correndo, buscando ajudar, a ambulância chegando, conduzindo, rapidamente, a jovem mãe grávida, prestes a dar a luz; ela, então, parada, perdidamente perdida, com as malas na mão, a bela garotinha, sua filha, ao lado, ambas esperando o irmão, que há muito residia neste país chamado Brasil; a chuva, o porto, o apito, um navio partindo, outro chegando, e ela Michelle, a mãe, Anne Caroline, a filha, as duas chegando, fugindo, chegando da França, precisamente de Paris; o irmão estava demorando, que havia ocorrido? Teria esquecido? Não poderia ser, meu Deus, pensou Michelle, aquela, essa, senhora francesa, de cinqüenta e seis anos, que a duras penas conseguira evadir-se da perseguição deles, os nazistas, os demônios da suástica invertida, os filhos do ocaso negro, de Abraxas.
No alto, em cima, os noticiários dos acontecimentos, no deserto do Saara: "os blindados da divisão Panzer, enviados por Rommel, acabaram de destroçar, de vez, uma infantaria toda dos Aliados": Hitler, nessa hora, estaria muito contente; certamente iria, logo mais à noite, à Ópera ouvir a obra vanguardista de Wagner.
Ainda a chuva batia, sutilmente, sobre o paralelepípedo, as pedras, do porto, assim que Michelle percebeu aquele senhor, ou melhor, seu irmão, já um tanto derruído, macerado pelas ferraduras do tempo, descendo de um belo Studebaker negro-laminado, dentro de seu desgastado capote marrom-claro e seu chapéu de feltro; há muitos anos não se viam; ele viera para o Brasil tentar a sorte e aqui montou seu comércio, que era, naqueles dias, uma pequena rede de panificadoras; além do comércio, atirou-se, também, no caminho da religião, que tanto gostava; em poucos anos, chegara a ser, como era até aquele momento, reverendo de um enorme templo no centro da enorme cidade de Santos; ao descer de seu Studbaker de pneus brancos, faróis possantes, dirigiu-se a Michelle, deu bom dia, beijou-a na face esquerda; em seguida, tomou Anne Caroline nos braços, dizendo, entre um sorriso e outro, que formosura, que linda menina, Michelle!
O cuco do relógio da sala de jantar surgiu seis vezes na portinhola, dando a entender que eram seis horas; o jantar fora posto por Gerusa, negra serviçal do reverendo, que sempre no sermão de domingo referia-se ao diabo como sendo uma coisa horrenda, negra, imunda; ora, Gerusa era negra, tão asseada e nem de diabo entendia: por que o diabo tinha que ser preto? Acaso não existia, ou existe, diabo branco? Imaginava ela, Anne, todas as vezes que voltava do culto.
O reverendo Pierre-du-Soir disse na sala de estar que, a partir daquele dia, Michelle iria trabalhar na panificadora Gran-Prix, no largo da praça; disse, ainda, que Michelle e sua filha Anne ficariam habitando os dois cômodos de um barracão nos fundos do casarão, ao que Michelle nada discordou, posto que só de haver conseguido fugir da perseguição nazista, na França, era, sem dúvida, uma grande vitória; Deus, ainda, estava, com ela e sua filha.

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Obra Reunida
Short StoryDIÁBOLOS Estava Jesus a expulsar um demônio que em mudo. Ora, assim que o demônio saiu, o mudo começou a falar e o povo ficou maravilhado. Mas, alguns observaram: é por Beelzebuh, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios. Lc.11.14-22.