Obra Reunida

Diábolos

DIÁBOLOS

Estava Jesus a expulsar um demônio que em mudo. Ora, assim que o demônio saiu, o mudo começou a falar e o povo ficou maravilhado. Mas, alguns observaram: é por Beelzebuh, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios.

Lc.11.14-22.

A ÁRVORE

Árvore frondosa, copada, balançando em frêmitos no sopro morno, fofo, da brisa em escarlate, esmalte, cinzel e lâmina. Sol. Lumes, ainhavos: luzazul nos linhos e limbos dos tíbios raios solares, sonoros, suaves, pendentes, no ângulo da janela. Algazarra, chilrear na copa, chapéu, da árvore. Um melro, outros pássaros, pardais, muitos, na flauta, soprar do vento batendo tépido contra os vidros, a vidraça semiaberta, opaca, lilás. A árvore, na praça, sob o céu apinhado de nuvens em chumbo, tártaro e hibisco. Sim, uma árvore apinhada de pássaros, ventos, na tarde boba, choca, oca, sem poetas nem guilhermes ou almeidas.

NO QUARTO

(Rememórias)

Àquela hora ele não era Rodolfo Valentino, nem Beethoven, muito menos Rodin, Chaplin, algo assim notório, expressivo, chamativo; afinal, o que era ali no leito sobre o lençol encardido, amarelado pelas unhas do tempo, da folhinha na parede em calendário esquecido, mumificado? Um vento crepe uivava lá fora na beira do rio e sua alma, a alma dele, Lucrécius, sem ser Heráclito, dizendo, de per si, que "tudo flui como um rio, e não se entra duas vezes no mesmo rio", e que rio seria seu ser, seu corpo, agora, estendido, semivivo, quase morto sobre o leito, a cama, o fundo, a furna, a fenda do quarto amorenado, turvo, sem mesa, vazio, esquecido? Lembrou-se, confuso, de Van Gogh e o amarelo de sua pintura, seus delírios, o quadro "O Quarto de Arles". Onde, hoje, os amigos, os parentes, a família? Nada naquele quarto, além de si, o mofo das paredes, o velho e esbranquiçado urinol. De vez em quando ela, ferrugem ou mulher?, aparecia, media sua pressão, sem, contudo, deixar de aplicar, fazer valer a agulha, a seringa, o remédio necessário à sua cura; sim, onde ficara a sua gente? Na memória, ainda guardados os dias, as horas, em que possuía sua filha Carla, sua esposa Judith; ainda na sua memória os slides, o filme, os cenários, de quando lá atrás fora um empresário bem sucedido, importante, muitas mulheres, nos muitos e muitos dias de mesa de fogo, Frank Sinatra e White Horse, vodka, cerveja, em suma, a dura mesa do vício, da távola sem ser redonda, de quem não mais se domina, não se conhece e se perdeu de vez nos labirintos e desespero de um novelo e seu tear eterno; na memória ainda a entrega total ao vício, à ruína, ao pânico, até que na noite do dia 13, segunda-feira de um ano qualquer, passado, o choque, a batida, o desastre com o carro, a filha e a esposa mortas. Daí para frente, aliás, para trás, passou a beber mais, e mais, por remorso, loucura, peso, pêndulo e corvo de Poe: never more!; daí para frente até naufragar-se por completo, de corpo sem alma, no mar danoso, urdido, do álcool, da dor; daí para frente, para trás, até romper a corda e ele descer, cair, espatifar-se no chão imundo da penúria, da indigência, falido, esquecido por um, por todos, à espera da morte, com o fígado e o pâncreas comprometidos, arruinados pelos rebentos, os rebotalhos do vício, do álcool. Não pode, não deve, jamais quer submeter-se à cirurgia, uma vez que naquele hospital por uma vida estava o fio, a corda, o sentido de sua existência. Não podia esperar, fazer aquela cirurgia no pâncreas, pois, como estava, ouvira, quando em estado de letargia, dormência, o médico, doutor Janius citando Fausto, Goethe, Ich hin der Geist, der stets verneint, dizendo baixo, em sussurro, que na vida nada Lavoisier: tudo se transtorna, falando, inclusive, que ele, Lucrécius, não teria a menor chance de sobreviver à operação, que seria uma coisa fatal, sua chance era pouca, labiríntica, sem ser Mino, taurus ou touro.