A Tábua

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Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Poema em Linha Reta

Fernando Pessoa

A TÁBUA

Les hommes, dict une sentence grecque ansienne, sont tormentez par les opinions qu 'ils ont des choses, non par les choses mesmes.

Montaigne, Essais, I.I. c. XI

Eu acabara de ler "As palavras Divinas", uma breve narrativa de Leon Tolstoi, cujo efeito moral insere a máxima de que a nenhum homem é dado saber o que fará amanhã, uma vez que a morte é para muitos quase sempre uma surpresa; às vezes, acontece tão de repente.

Chovia fortemente naquela noite. A chuva batia fria por toda parte, nos telhados, nas ruas, no jardim tomado de petúnias, dálias, folhas secas, esverdeadas, figueiras e carambolas. O tempo estava, assim, com aspecto nacarado. Voejava no ar um cheirinho de bolo frito, coisa, decerto, de algum vizinho. Um pássaro negro, num rompante, chocou-se desesperado contra a vidraça colorida da sala; bateu, caiu e voou novamente. Num pensar, abri as Sagradas Escrituras, dando então de cara com as leis divinas, as tábuas de Moisés. Ao deparar-me com isso, eis que, súbito, veio à minha memória a figura de Emiliano Zapata Júnior, filho do velho Zapa, mexicano residente aqui há muitos anos, atacadista conceituado, dono de muitas cerealistas, arroz e feijão, no bairro da Mooca.

Vivia eu rente à sua casa, só eu e mamãe, cuidando-me de apenas observar e nunca intrometer-me. O que o velho Zapa sofrera com esse seu filho Emiliano é coisa de só mesmo o capeta explicar. O menino, desde novinho, era terrível. Casos em que ele botara fogo na saia da professora, enfiara a mão da tia no óleo quente do tacho, furara olho de moleque e furtara, eram inúmeros. Quando rapaz, deu para beber bebida alcoólica, usar drogas, fazer assaltos. O velho Zapa já não sabia mais como mostrar a cara à vizinhança. Todos na Mooca chegaram até edificar um abaixo- assinado pedindo sua mudança. Como nunca na sua juventude o velho Zapa sofrera. Emiliano era a figura do Cão.

Certo dia, o velho Zapa, estando à sua espera, disse-lhe, sobre a fosca luz da sala de estar, "olha, meu filho, a partir de hoje, toda a ação ruim, que você executar, terá como marco um cravo pregado naquela tábua de mogno que lá está", e mostrou, franzindo o cenho, a tábua no canto da sala. "Para cada ação boa, retirarei um cravo", concluiu.

Por um longo período, aquela tábua permaneceu naquele canto. Estava farta de cravos e, como o disse o grande poeta Kalill Gibran, "a vida não anda para trás nem se demora com os dias passados", Emiliano, agora mais amadurecido, procurou andar para frente, construindo, então, no seu cerne uma boa árvore frutífera: resolveu tomar tino, pois seu velho fora acometido de um problema na espinha, que o impedia de caminhar. Zapa ainda dirigia os negócios, porém, sobre uma cadeira de rodas.

Revivendo o conhecido pensamento de Confúcio, "não se deve dar peixes aos Homens, deve-se ensiná-los a pescar", foi que Emiliano buscou o seu mar de peixes. Em pouco tempo, tornou-se homem de quase boa índole, fazendo muita bondade, ajudando, acalentando os demais. Mudara bastante, mas, mesmo assim, fazia alguma má ação. O velho Zapa, impossibilitado de agir com plenas forças, passou a retirar da tábua alguns cravos, obedecendo, enfim, ao fato de que para cada ação ruim uma ação boa.

Os anos correram; devido ao número maior de boas ações, o velho Zapa tirara quase todos os cravos, restando na tábua apenas um; Emiliano se mostrava evoluído e mais humano.

Numa tarde umbrosa, o velho Zapa entrou numa tremenda decadência, indo, então, às últimas conseqüências de sua enfermidade. Ficara meio abobalhado, entendendo pouco, possuindo, no entanto, alguma réstia de luz de entendimento. No tempo em que durou sua enfermidade no hospital, pouco antes de falecer, Emiliano cuidara dele com todo carinho e, por isso, achou por bem retirar o último cravo. Assim procedendo, levou a tábua à presença de seu velho pai que, num raio de sapiência, disse-lhe: "Emiliano, você paga, mas não apaga, olha só os buracos que ficaram".

Dias depois, o corpo do velho Zapa fora servir de repasto às ervas, aos vermes, de um suntuoso túmulo no cemitério chamado Altar dos Mortos, ali mesmo no subúrbio da centenária Lajes.

Os anos se foram e eu, que acompanhei todos os passos de Emiliano Zapata Júnior, inclusive o fato de ele haver-se casado, ter tido também um filho de nome Emiliano Zapata Neto, posso dizer que hoje estando, enfim, aposentado, nada sei fazer senão ler Tolstói, Balzac, Proust, eu que nunca fui reles na vida, que nunca conheci quem tivesse levado porradas. Agora, uma coisa está certa: Emiliano Zapata Júnior tem comido o pão que o diabo amassou, com seu filho Emiliano Zapata Neto, pois o guri é o diabo em pessoa. Acredito que qualquer dia desses Emiliano Zapata Júnior irá até a marcenaria de seu Rodolfo à procura de uma tábua, ainda que não seja de mogno, pois, do que sei, na cadeira de rodas ele já está.

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