VAMPIRE

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VAMPIRE

Ninguém se tente iludir: tudo é vaidade.

Feliz aquele que nunca nasceu. A morte vale mais do que a vida. É preciso se desfazer da vida.

Tolstoi

Querida Liz Wollmann

... eu, Vladimir Stein, preciso falar, confessar-me, é hora, urge; aqui, neste findar de século, posso dizer que te amo mais, como nunca um mortal ousou amar; tenho te buscado, e busco, através dos séculos, do inexorável sugar do Tempo e seu pêndulo de ouro; há muito venho viajando, atravessando esta Noite incomensurável, terrível, que é meu destino, meu coração, o poço infindável de meu ser, meu ego, meu todo; o Tempo e seu relógio têm-me batido, sufocado, feito um zunir, um tambor, algo, assim, farto, retumbante em intempéries; o Tempo e seu relógio de escusos cucos, como aquele que, certa feita, pude ver naquela antiga loja de Strasburgo, têm-me arrastado, levado-me no dorso de búfalo; por isso, como um louco, um alienado em si, tenho viajado, atravessado as distâncias, o nunca chegar de mim mesmo, nesta Noite, nesta eterna Noite ilusória, onde, de quando em quando, ouço, vislumbro, entre o chilrear dos pássaros noturnos e o roçar do vento nas copas das árvores, o sussurro, o balbuciar de tua voz, tua fala, o mel de teus lábios; é assombroso, belo, ouvir, no tanger do pêndulo e o fogo do relógio do Tempo, o sussurro musical de tua fala, teus lábios, pois, quando falas é como o burburinho das águas da fonte sobre o morno veludo dos musgos; tenho sido arrastado, às vezes, neste turbilhão, estrondo de cacos, sombras e ganidos, advindos, talvez, das furnas dos céus, desta interminável Noite; em nenhum momento pude, ou posso, sentir que tu estavas, ou estás chegando; às vezes, podes pensar que eu, ainda que vampiro, Cão, seja mais forte que tua alma; nada disso: com tua luz, candura, suavidade própria que és, podes, contudo, ser mais forte que eu, sobretudo capaz de reter-me no êxtase de teus olhos; eu sei, entendo, tenho vivido todo este tropel, este estouro de antílopes, gritos, encerrados em mim, no Hades de minha memória; por isso, há séculos venho percorrendo os becos, os labirintos da Eternidade, a grande Noite que sou; e dói muito este vazio, este nada, esta solidão; em todo o meu arder, no vampiro que sou, na maioria das vezes não existe a carência tanta de sangue humano; a minha sede maior reside no amor; sou, na verdade, carente de amor, de teu amor unicamente; todas as mulheres, que conheci, sequer aproximam de tua imensa aurora de ternura, beleza; há séculos, repito, venho te buscando, e esta inexpugnável solidão tem-me atravessado o peito, como uma estaca; feito um cão ferido em sua pata, tenho te procurado, num arrastar e subir, entre os céus, os abismos e as lonjuras da Terra, com minhas asas, o espírito da Sombra que sou, que urdo, imagino ser; muitas e muitas vezes, tenho te buscado, tocado a ferrugem, os corredores dos séculos, do milênio que ora finda; muitas e muitas vezes, tenho tateado os muros da existência, com meus dedos de escuro; eu sei, compreendo perfeitamente que não é, não será, agora, o grande encontro, o momento de nós; isso só nos será possível em Dublin, na Irlanda, no ano de dois mil e cento e cinqüenta; há séculos busco, espero; finalmente, assim me parece, tu chegaste, estás aqui e eu sei como encontrar-te; nada vai impedir-me de te amar, ainda que de maneira tão rápida e desigual, pois o momento não é agora e tudo me soa a um timbale de ausência; aqui, agora, tudo há de ser muito rápido; sei que irás embora, seguirás teu destino e eu também; o Tempo e seu relógio de estranha aurora nos darão o momento certo que, acredito, será em Dublin; na verdade, a força, o domínio, que tens sobre mim é algo enorme, talvez, assim, como o choque das águas do Nilo chocando-se contra as águas do mar Mediterrâneo; quando em minha mente pressinto tua face, a luz de teus olhos, quedo-me extasiado, como um bêbado, um náufrago de encanto e doçura em véspera de Deus; sou dominado, perdido em mim mesmo, mas posso ver, e crer, que tua alma é minha alma: só tua matéria é toda primavera; nunca mais te beijei, te toquei, desde o século XVIII, quando vínhamos pela estrada que leva às portas de New Orleans; nunca mais te toquei, como naquele dia!; a minha paixão por hoje é vasta e a ansiedade por te tocar, te amar, com a energia universal de minha Noite, parece inacabável e sói ser como o big-bang viajando por toda a espinha do Infinito; eu sei, meu amor, somente agora chegaste, por entre as galerias desta Noite, este assombro que vivo, que sou; tenho subido várias, inúmeras vezes a Leste do Éden, à tua procura; penetrei ali esquivo e silencioso; pude, ali, ver que, no meio de tantos, muitos anjos de luz, tu não estavas; depois de tanto procurar-te, desesperei, fugi, desci novamente ao país do desencanto, das sombras, este que ora edifico, que é, sem dúvida, meu mesmo eu, os signos do Nada, a Serpe escura, ardilosa, do meu coração; era naquele instante minha intenção ouvir o doce mel de tua fala, tuas palavras, que, se não são de ouro, são halos e polpas de morango, sobretudo aroma e doçura de tangerina; era, ainda, do meu intento perguntar, saber por que a idade de nossas almas não se encontra, não se sabe, é tão árida?; por que sina, pecado, estigma, denodo, não tenho teus lábios nos meus?; por que destino tenho que ser esta eterna Noite, esta solidão de ossos atravessando-me o peito, o nada que sou? Não sei. Sei, apenas, que sangro de amor por ti, tua alma, o paraíso que reside no fogo de teu ser; é dói-me este estigma, e, no momento, esta causa pulsa forte e fere-me o senso, a razão e a ousadia de adejar pelos vórtices do Tempo; tenho que parar de redigir, querida, pois a aurora vem surgindo rubra, tocante e a luz de suas entranhas cega-me, faz com que a força de minha alma se quebre e queime; é preciso que eu retome ao meu ataúde, que é, enfim, os becos de meu coração e suas portas de ônix, o fechar-se, enterrar-se em si mesmo.

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