Capítulo 1 - Adaptação

3.1K 244 163
                                    

O apartamento no Distrito Quatro amanheceu agitado. Eu corria tentando parecer apresentável para a reunião com a produção do filme. Era primeira adaptação de um romance meu para o cinema e, eu realmente queria convencê-los que eu tinha alguma ideia do que estava fazendo. Além disso, Pedro e Victor tinham natação, eu me sentiria mais responsável se os deixasse prontos e alimentados antes de sair de casa. Não contava que a pouca vontade de saírem da cama, acompanhada pela minha completa desorganização provocaram a cena caótica que se desenrolava agora. Uma mulher usando camisa de seda cor de ameixa, com a maquiagem pela metade, cabelos por pentear, gritando como louca com gêmeos de sete anos e enfiando-lhes goela abaixo colheradas de cereal. Enfim, Marie chegou. Desisti do papel de super mãe e fui terminar de me aprontar para a reunião. Saímos os quatro ao mesmo tempo do apartamento. Beijinho rápido nos meninos, tão diferentes entre si. Pedro, fez questão de me abraçar com seus braços franzinos e aproveitei para acariciar os cachos cor de chocolate quase batendo nos ombros. Victor acenou com sua mão gorducha e ainda gastei alguns segundos observando a cabecinha loira e sempre despenteada. Entrei no taxi faltando apenas dez minutos o horário marcado. Eu iria me atrasar, e isso não era novidade nenhuma.

Desde o divórcio eu me atrasava para todos os compromissos. Manicure agendada, encontros com meu editor, noites de autógrafos, cinema. Há dois anos eu não chegava no horário a nada. Há dois anos estou perdida e feliz como nunca estive.

Eram nove e quinze quando finalmente cheguei ao prédio de escritórios. O atraso de um quarto de hora era mais que perdoável no trânsito caótico de Paris. Dei uma olhada rápida na parede espelhada a tempo de perceber que minha saia estava com a barra meio levantada. Passei as mãos alisando, ajeitei a gola da camisa, chequei de novo o casaco leve e o coque tão usado pelas francesas e adotado por mim por ser bem mais fácil que uma escova impecável. Na imagem, a mulher de um metro e sessenta, manequim trinta e seis, cabelos castanhos e olhos amendoados sorriu de volta, aprovando o que via. Levou muito tempo para aceitar minha própria aparência, mas ultimamente vinha me tornando até meio convencida, amando espelhos. Era um sentimento poderoso, eu tinha a sensação de invencibilidade E foi com esta atitude que entrei na sala de conferências lotada de homens de terno, esperando por mim.

Passamos horas discutindo detalhes da produção, descrevendo personagens e finalizando a adaptação do roteiro. Fui vencida algumas vezes, mas consegui manter a base da minha história intacta. Não daria a nenhum executivo de cinema o direito de mutilar o mundo que me tomou quase a vida para construir. Minúcias da história eram destrinchadas quase com crueldade por aqueles homens que queriam saber cada vez mais dos porquês de cada situação, cada decisão, cada pedacinho de terreno daquele mundo que, para eles era mais uma história lucrativa para adolescentes e para mim, foi o único refúgio por muito tempo.

A alguma altura lembrei da menina antissocial, sempre enfiada nos livros. De enciclopédias a romances, passando por gibis e cordel. Qualquer coisa que me caísse nas mãos seria lida com voracidade. O motivo era simples. Nas páginas era fácil, eu podia viver qualquer vida, saber qualquer coisa, amar e odiar sem consequência. Nos livros ninguém ria de mim por uma pergunta imbecil ou se chateava pelas minhas respostas inconvenientes. Ser dois anos mais nova que a maioria dos colegas de classe não ajudava a conviver com eles, então, meus amigos eram os personagens, os autores eram meus conselheiros e as palavras o meu grande conforto. Escrevi centenas de contos, crônicas e cartas desde os seis anos e, aos treze, decidi criar um mundo só meu. Tudo veio de um jeito tão natural que ainda acredito que o meu mundo sempre existiu, eu só precisei descobri-lo, criatura a criatura, história a história. Vivi todas as aventuras com eles, desfrutei todos os sabores e paisagens. Sofri o medo e as perdas, senti a esperança e os amores. Foi naquele mundo que cresci, e agora tinha a chance de mostrar todo ele a alguém que poderia vê-lo como o refúgio que era, e poderia ajudar outra menina desajustada a se sentir em casa, como tive a chance um dia.

Este pensamento me despertou do tédio e irritação que tudo aquilo me provocava. Voltei a me empenhar em mostrar o meu mundo da melhor maneira possível, não pela bilheteria ou pelos prêmios, mas porque eu tinha certeza do quão precioso ele seria para alguém. Talvez, tanto quanto para mim.

Ao fim da tarde, agendamos a seleção dos atores, que seria feita em Los Angeles, onde ficava o estúdio. Em menos de uma semana, finalmente meus personagens teriam um rosto além daquele impresso na minha mente há tanto tempo. Fui para casa levando uma caixa enorme de portfólios de atores que esperavam poder se tornar um de meus personagens. Evitei pensar muito no quão absurda seria a tarefa de encontrar um rosto humano para Jerko, o guerreiro, ou ter uma menina qualquer representando tudo o que Sol representava.

Já era noite quando entrei no apartamento, os meninos deixaram a mesa correndo ao ouvir o barulho das chaves na porta, o que provocou um olhar de desgosto à babá francesa. Imagino o quanto deve ser frustrante para Marie conviver com uma família brasileira, indisciplinada até para os padrões do nosso país informal. Abracei os dois ao mesmo tempo, colocando a caixa no chão e empreendendo um ataque de cócegas. Aqueles dois garotinhos eram o meu motivo mais forte para tudo aquilo.

Depois de várias histórias para dormir, eles finalmente se renderam ao sono. Abri uma cerveja e resolvi vasculhar a caixa. Havia etiquetas com informações da pré-seleção dos atores, papéis anteriores, personagem pretendido, impressões dos produtores. Olhava as fotos sem me prender a nenhum rosto. Vez ou outra, tinha a impressão de reconhecer um daqueles sorrisos. Estrelas adolescentes, completos desconhecidos, todos exibindo aquela improvável perfeição hollywoodiana que os fazia parecer todos iguais. Desprezei a caixa e foquei na cerveja que começava a esquentar.

No sábado, desembarcamos em Los Angeles. Segui direto para o estúdio e Marie levou os meninos ao hotel. Fui recebida por uma assistente estressada usando dois celulares ao mesmo tempo gritando com alguém a respeito de um sanduíche servido errado. Não pude evitar uma rir, frustrada. Era o tipo de cena que via constantemente nos escritórios do ex-marido. Uma secretária histérica depois de ser humilhada por causa de um número errado numa planilha, um voo atrasado, um erro de ortografia num documento. Em casa ele tinha que conviver com a minha desorganização, surtos criativos e total desprezo por obrigações prosaicas como o horário do jantar ou a situação da gravata de seda que ele queria usar. Nesse caso, os gritos histéricos eram dele, furioso e vermelho cada vez que algo fugia de seu controle. Naquela casa, nada estava sob controle. Nunca entendi por que ele quis se casar comigo, e muito menos por que eu o aceitei. Alguém que valoriza a perfeição nunca deveria ter se interessado por mim. Sempre fui a imagem do caos. Mesmo tentando, jamais alcançaria os elevados padrões de Rodrigo Soares. Não conseguiria nem se desistisse de mim mesma, e para falar a verdade, não estava disposta a isso. Assim, não fiquei nem triste nem chocada quando, dois anos atrás ele decidiu acabar com o casamento, aparentemente encantado com uma jovenzinha tão perfeita quanto ele. Perfeita como eu nunca seria. 

Mais Que Perfeito  *Degustação*Onde histórias criam vida. Descubra agora