Capítulo 2 - Meu Nome Não é Jano

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Não vou retratar aqui minhas más condutas, meus entorpecentes ou meus erros, nenhum segredo recôndito ou satisfazer qualquer curiosidade sórdida do desconhecido. O título é alusão a exatamente aquilo que parece ser, no entanto uma referência meramente tangencial, fonética poderia dizer, com mais afinidade com o relato que inicio que com a obra da qual extraí.

A questão principal é exatamente a titulada: meu nome não é Jano. Jano é um apelido carinhoso da redução de meu nome oficial, o qual é muito comum, está na boca de todos e de qualquer um, mas não para se chamar uma pessoa.

Minha mãe, quando grávida de mim, já me amava tanto que nunca se importou por qual seria o nome da criança. Não fazia diferença. Ela somente desejava com verdadeira paixão, mais que tudo na vida, que aquilo saísse de dentro dela, que a deixasse retornar à cintura cinquenta e poucos o mais breve possível; que não precisasse ir ao banheiro a toda hora para mijar apenas, pois a eterna prisão de ventre já havia arrebentado todas as hemorroidas possíveis de existir em um só buraco; nem se sentir como se tivesse gazes ou devorado uma vaca sozinha; que acabasse a sensação de ter comido um bicho vivo que não teve a decência de morrer após ser engolido e que tentava se libertar a todo momento esticando os membros aleatoriamente em seu ventre, pressionando ainda mais suas entranhas.

Para ganhar definitivamente a simpatia da nobre senhora de vinte e poucos anos que seria minha mãe para sempre, tive a esclarecida ideia de invadi-la, sem sua anuência, em abril ou maio, o que a matemática simples revela que o auge de seu sofrimento coincidiu com o verão tropical úmido. Nessa época do ano há dias com sensação térmica de cinquenta graus e umidade acima de oitenta e cinco por cento. Isso significa roupas banhadas de suor e coladas na pele para as pessoas comuns, que não carregam outro ser humano compulsoriamente há sete meses ou mais. Ela me adorava!

Eram os anos setenta. Ar condicionado era um artigo de luxo e luxo era um artigo desconhecido em casa de mamãe, antes mesmo de Jano, a (altíssima) despesa extra, dar suas caras através de sua vagina. E essa foi a cereja do bolo. Vim um pouco antes do programado pelo médico e pela astróloga – não sei ainda em quem mamãe confiava mais, mas acho que as estrelas estavam um pouquinho à frente da medicina –, e rasguei a bela menina como nenhum amante, por mais talento que apresentasse, poderia ter feito, antes ou depois de mim.

Minha mãe não me odiava, ela era indiferente, sem expressão afetiva. Cumpriu formalmente todo seu papel, com poucas reclamações. Hoje acho que teria lidado melhor com a rejeição explícita que com a sub-reptícia indiferença. Contra-agir é muito mais fácil e claro em face de outra ação, mas não vejo muito que fazer diante do nada, do não-feito. A ofensa pode ser aniquilada por diversas respostas, verbais, físicas, jurídicas, morais, imorais etc. Você pode não ser bem sucedido na resposta, mas ela foi dada. Como reclamar da conduta dos pais quando a comida está sempre em cima da mesa, você está na escola e não é cobrado, não é surrado por qualquer coisa, pode, enfim, ir e vir com mínimos questionamentos? Não tenho resposta. Sei que nada sei sobre isso além do que aglutinei involuntariamente em mim todos esses anos. Sei de mim, apenas.

Todos a consideram uma boa mãe, e eu não posso não concordar. Estou vivo, inteiro, íntegro segundo os parâmetros sociais que fui obrigado a seguir e acatar, não feio, embora ela fosse linda, tenho até nível superior que me permitiu conquistar um emprego público de grau mediano que me sustenta com um pouco mais de luxo, algo acima do básico, que ela poderia ter na mesma época de vida que enfrento hoje.

Afinal, a gravidez mesmo é que foi sofrida, um martírio. Embora esse desagrado fosse acontecer novamente em sua vida. Ouvi algumas vezes sobre as dores que ela sentiu para me “cuspir” e o alívio que meu choro causou. Mais alívio que felicidade, embora me vanglorie da certeza de que havia felicidade em algum grau, mitigada um pouco mais pela ignóbil mão do arquiteto genital que remendava sua vagina com agulha e linha. Desconheço exatamente qual a medida de simultaneidade desses acontecimentos, mas todos eles tinham um motivo comum, um gatilho: eu.

Jano (provisório)Onde histórias criam vida. Descubra agora