Capítulo 3 - Início Parte Um

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Há um momento na vida em que se tem a percepção razoável do que ela é, de sua lógica aparentemente aleatória, concatenando os acontecimentos passados com o resultado presente, o que permite ao sujeito um tênue vislumbre de seu futuro, e isso, nas pessoas como Jano, desprovidas de projetos fantasiosos que deturpam a precisão do cálculo, não é um prazer que se deseje.

Jano estava nesse exato momento de sua existência. Dava uma olhada geral em seu meio-ambiente e notava algo absolutamente aterrador: o nada. Não somava sentido às suas ações; eram desprovidas de objetivos e de causas. Percebia-se solto no espaço, sem apoio e sem direção ou sentido, sem referência. Apenas estava ali, naquele local, naquele tempo, daquele jeito.

Esse espaço era sua mesa de trabalho. Também poderia ser sua cama, seu quintal, seu assento no ônibus, sua linha mais ou menos reta no caminho de casa ou do trabalho. Mas, quando acometido pelo sentimento que o perturbava, estava debruçado em sua mesa de trabalho, com a manhã passando de seu auge lá fora, dedilhando o teclado sem muita consciência do texto que surgia brilhando na tela. Era um gesto automático que o fez, em um átimo, relacioná-lo com toda sua vida. Parecia que ela corria à feição do vento ou segundo a oscilação das marés. Uma vida sem verdadeira vontade. Pouco vital, pode-se dizer.

Até então, não era exatamente infeliz, nem mesmo saberia definir como infelicidade aquele nada, uma vez que era incoerente que o vazio pudesse carregar consigo qualquer coisa, mesmo que fosse um sentimento. Entretanto, aquele era um vazio que preenchia, deixava sua garganta a ponto de fechar, um sufocamento de peito aberto. O próprio ar que era levado à força aos seus pulmões parecia pesado, e não era tarefa fácil expulsá-lo. Jano se sentia petrificar lentamente, de dentro para fora. Todas suas funções precisavam ser pensadas e coordenadas manualmente.

Com todo esse sentimento, notou que o som das teclas havia cessado. Seus movimentos foram abafados pela perplexidade que deitava sobre seus ombros. Percebeu mais um fato: Luísa, sua vizinha de mesa o olhava de soslaio sem parar de atacar seu teclado, alternando entre o trabalho e o espanto de Jano. Certamente aquele seria um serviço com mais erros que o comum. Jano estava parado no espaço, e Luísa desviava sua atenção. Não havia dúvidas quanto a alguma conexão, e esta conexão incomodava a colega.

“Jano, você está bem?”, questionou Luísa quando, finalmente, eram dois os funcionários que se interrompiam. O silêncio de dois ou três segundos até a estátua pronunciar um leve e reticente “hã” e que não respondia qualquer coisa, trouxe apreensão ao semblante de Luísa que logo sugeriu que ele procurasse o serviço médico, pois sua cor não era de gente viva. Com essa pequena sutileza, Luísa se livrava sem remorsos da obrigação de auxílio ao próximo e se sentia satisfeita consigo mesma e aliviada por ter demonstrado sua compaixão e cooperado para que seu colega não lhe causasse o constrangimento de vê-lo morrer ao seu lado e obrigá-la a verdadeiramente fazer alguma coisa. Até a chorar, quem sabe. “Não, ele não teria a indecência de fazer isso comigo”, era o pensamento oculto que melindrava Luísa e a incitava a agir. Em defesa da colega de Jano, era certo que ela mesma não tinha esse sentimento formulado na cabeça. A coisa simplesmente funcionava assim. Ela era uma boa pessoa, afinal.

- Oobriigaadoo. Balbuciou Jano, estendendo as sílabas como se tivesse que pensar muito para ter certeza de que não iria errar a próxima. Tudo era incerto; ao mesmo tempo, tudo estava lá. Era sem ser.

Levantou-se de sua cadeira, olhou de longe pela janela para se certificar que o mundo ainda estava lá fora, e caminhou, num silêncio surdo, até a porta. Girou a maçaneta, puxou a porta e saiu deixando-a bater com a força da mola sem se dar conta do estrondo. Somente com a batida da porta que os demais funcionários perceberam que Jano se levantara, mas já era tarde demais para questionar ou impedir qualquer coisa que fosse.

Ver o médico altear a sobrancelha ao ler sua ficha em branco, pois era a primeira vez que usava o serviço de saúde em oito anos de trabalho, não foi possível afastar um amargo bolo que se formava em seu pescoço, pois sabia que se tratava do estranhamento perpétuo que as pessoas têm ao ler seu nome: Janeiro Alvarez Pires de Paiva. Jano nunca foi feliz por seu nome, ao mesmo tempo peculiar e comum, como também por seu apelido. Ambos o perseguiam desde sempre. Ao menos, quando se era adulto com um trabalho estável, não havia chamadas como na escola, onde sofria todos os dias com a pronúncia em voz alta de seu vexame perpétuo. E eram cinco aulas, cinco chamadas, cinco risos por dia. Mesmo quando as zombarias não aconteciam mais com frequência pelo envelhecimento da piada, Jano continuava a ouvi-las em sua cabeça condicionada. Odiava chamadas.

Catorze por nove. “Nada muito grave”, temperou o médico da repartição. Mas, por via das dúvidas, como aconteceu no horário de trabalho – havia testemunhas – e não queria ser taxado de desumano e férreo, era uma quarta-feira, ambos eram servidores públicos e tinham a exata noção de que a nação não se ressentiria da ausência de Jano, deu-lhe estratégicos três dias para descansar após uma dose quase inexpressiva de uma panaceia qualquer, com o conselho pragmático de procurar um cardiologista e iniciar um mínimo de exercício, para prevenir, pois nos meados dos trinta é quando se começa a envelhecer. Cumprira, assim, seu dever e o juramento de Hipócrates, mantendo-se fiel aos preceitos da caridade, da honestidade e da ciência. Esta em menor grau. Como Luísa, o doutor se despediu de Jano satisfeito com a própria conduta, feliz por seu papel social cumprido e por não ter que mudar sua rotina com uma ocorrência de fato grave que ensejaria telefonemas, providências e, o pior, acompanhamento. Com alívio, viu sua porta bater escondendo-o do resto da humanidade até o próximo paciente.

Jano entrou e saiu do consultório sem sequer saber o nome do médico, pois este deve ter considerado que era desnecessário fazer-se conhecer por alguém que não desfrutava de seus conhecimentos. Apenas levava a sério a condição de afastamento indispensável aos médicos para que possam conviver com as terríveis baixas de sua profissão. Não havia motivos, então, para que o médico o encarasse, lhe apertasse a mão, lhe dedicasse um pouco mais de tempo que o apenas necessário para os procedimentos e perguntas de praxe. Toda e qualquer resposta, ou observação maior que ultrapassasse o sim ou o não, sequer era ouvida. Jano tinha a sensação que se o médico o encontrasse no corredor dois minutos depois de ter deixado sua sala, não faria a mínima ideia de quem ele era, e essa situação sugeria exatamente o objetivo de sua conduta: estar o mais distante possível.

Passou brevemente por seu setor para informar ao chefe sua licença, tempo suficiente para as pessoas se reunirem à sua volta com comentários de pronto restabelecimento e boa saúde, que deveria se cuidar dessa ou daquela forma com veementes alertas sobre tudo o que não deveria fazer, percebeu leves sorrisos e olhares de compaixão, alguns dissimulados e outros, em menor quantidade, sinceros. Não sabia ao certo em que lote Luísa se encaixava, e essas eram as pessoas que mais receava. Era a maioria delas. O sofrimento do contato humano não durou mais que a eternidade de cinco minutos, arquivou a licença com assinatura e carimbo da chefia e remeteu uma cópia ao departamento médico. Há burocracia até para curar-se. Com esse pensamento, deixou seus companheiros com um “até amanhã”, sem notar que não viria no dia seguinte.

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⏰ Última atualização: Jan 08, 2014 ⏰

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