Infância de raiva, dor e solidão

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Nasci numa família de classe média. Morávamos, eu, um casal de irmãos e meus pais. Vivíamos em paz numa família bem constituída com pais trabalhadores e visionários.

Meus pais trabalhavam e estudavam a noite e nós ficávamos sobre os cuidados de meus avós até que meus pais chegassem tarde e então íamos para nossa casa.

Certa manhã, aos seis anos de idade, eu e minha irmã, um ano mais velha, brincávamos com a filha da vizinha, da mesma idade, na calçada em frente ao prédio onde moravam os meus avós.

Era uma linda manhã de sol. Minha avó cuidava dos afazeres da casa e meu avô que era alfaiate, entre um alinhavo e outro, nos observava da janela do prédio.

Cansada de correr na calçada, porque sofria de asma, sentei-me na porta de entrada do prédio e fiquei observando minha irmã e minha amiguinha que brincavam. Aproximou-se um homem magro, branco, muito alto e de óculos.

-Menina, onde fica o último andar desse prédio?

-No último andar. Respondi.

-Mas eu não sei subir até o último andar, você me leva lá?

Então me levantei e de mãos dadas com o homem subimos até o último andar. Na porta do terraço, ele se abaixou e disse:

-Que roupa linda que você veste. Quem te deu esse vestido azul tão lindo?

-Foi vovó quem fez. Ela é costureira.

Então ele levantou meu vestido, baixou minhas calcinhas, com as mãos tapou minha boca e eu comecei a chorar. Terminado o que ele queria, saiu correndo e eu fiquei sozinha, em choque, sentada no último degrau do último andar. Pouco depois desci as escadas em direção ao apartamento dos meus avós, com medo, machucada, toda suja. Minha avó me acolheu aos prantos enquanto meu avô corria em pânico pelas ruas me procurando.

Eu não entendia o que acontecera comigo, mas pelo desespero da minha avó

Eu havia feito algo muito ruim por ser uma menina desobediente.

Em seguida, chegaram meus pais, minha irmã levou umas palmadas sem saber por quê... Porque não havia cuidado de mim.

Como assim, eu seis anos e ela sete... E então ela ficou muito braba comigo e me chamou de boba.

Por causa de você eu apanhei.

O assunto se estendia entre lágrimas e discussões, se deveriam acionar a policia e então minha mãe decidiu que não. Esse assunto estava encerrado, ela está bem, nada machucada.

Fomos para nossa casa e, ao chegarmos, meu pai foi sentar-se sozinho na cozinha cabisbaixo. Aproximei-me e ao tentar sentar no colo dele, ele me empurrou e disse:

-Não senta no meu colo,você é uma menina estragada

Tornei-me uma criança muito medrosa. Brincávamos sob a vigilância dos adultos. Depois de ter sofrido o abuso, meus pais contrataram uma senhora para trabalhar como doméstica e babá em nossa casa e, à tarde, minha avó vinha ver como estávamos.

A mulher que nos cuidava, permitia que fizéssemos nossas brincadeiras na sala enquanto ela dava conta do preparo do almoço e da limpeza da casa.

Entre uma brincadeira e outra, assistíamos desenhos na televisão. Lembro-me de Ultra mem., o Flintstone e Pica pau.

Tínhamos uma brincadeira predileta de *casinha*representávamos personagens tão realísticos e a rotina das histórias nunca se repetiam. Minha irmã mais velha era a dona Tárquia mãe da boneca chamada Tarquinha. Eu era uma religiosa chamada irmã Tarcizia que durante o dia orava pelas pessoas, visitava famílias e a noite coberta com um manto branco feito de lençol abordava mendigos e prostitutas para falar do amor de Deus e distribuir sanduíches para essas tristes criaturas.

Dona Tarquia odiava o que a irmã Tarcizia fazia, dizia que era uma gente fedorenta, mas geralmente quem estava fedendo era o nosso irmão de três anos que vivia o personagem Johnny cagão.

E a brincadeira era interrompida porque a babá tinha que trocar as fraldas dele que acabara de encher de cocô.

Acho que eu era uma criança muito chata porque chorava e apanhava muito da babá.

Um dia chorei tanto na hora em que meus pais estavam saindo para o trabalho e me urinei toda sentada no sofá vermelho que havia próximo a uma parede de cor azul marinho.

Minha mãe ao perceber o que fiz voltou da porta de saída do apartamento e me bateu muito com o seu calçado e foi embora.

Assim que meus pais saíram, a babá me trancou de castigo na sacada do apartamento até a hora do almoço.

Nunca gostei de feijão preto e a babá me obrigava a comer e, se vomitasse no prato era obrigada a comer o vômito também.

As vezes meu pai pela manhã me mandava ir até o mercado buscar o leite.

O mercado ficava na outra rua, próximo de casa.

O leite era vendido em garrafa de vidro.

Eu tinha medo de ser roubada de novo e então eu fazia o trajeto correndo e muitas vezes eu deixava cair a garrafa e quebrava e então eu apanhava de meu pai.

Você é uma menina medrosa.

Não lembro o que fiz de errado, mas, uma vez a babá me pegou pelos cabelos e bateu minha cabeça várias vezes na parede até que fiquei tonta.

Se já era medrosa e triste, a partir desse dia tornei-me mais triste ainda.

Braba, porque não aceitava que a babá batesse em meus irmãos.

Um dia, eu e meus irmãos revoltados com a maneira que éramos tratados pela babá resolvemos nos vingar e então minha irmã acendeu uma vela em cima do roupeiro da babá e quase colocamos fogo no apartamento.

A babá enquanto fazia o almoço, ingeria muita bebida de álcool do armário de meu pai, e então dormia a tarde toda e só acordava na hora de providenciar o jantar antes que meus pais chegassem.

Um dia ela estava tão alcoolizada e não acordou. Tocaram a campainha do apartamento. Era minha avó para nos ver no final da tarde. Orientou minha irmã que subisse numa cadeira para abrir a tranca da porta para que ela pudesse entrar.

Quando minha avó entrou no apartamento, foi até o quarto da babá, a acordou e a mandou embora e essa saiu cambaleando pela calçada até sumir no fim da rua.

A pia estava cheia de louça para lavar, a casa estava suja, meu irmão com a fralda cheia, pois ainda com três anos precisava de fraldas, pois não sabia pedir para ir ao banheiro e fazia tudo na roupa.

Minha mãe conseguiu outra babá. Essa era muito querida e foi inesquecível em nossa vida. Lembro-me dela como se fosse hoje e ela tinha o mesmo nome que minha mãe-Nice.

Carinhosa, cuidava de nós com muito zelo e brincava com a gente, claro, sempre dentro do apartamento.

Eu era uma menina medrosa e triste.

Meu pai bebia muito aos finais de semana e então eu dobrava os meus joelhos antes de dormir e orava por ele.

Mas bastava eu me deitar para literalmente o inferno começar.

No meu imaginário havia um homem todo vestido de preto que todas as noites me visitava em meu quarto e sentava em minha cama e tocava em meus pés.

Ele era assustador e então eu cobria a cabeça com as cobertas para não vê-lo e quase sem poder respirar chorava até dormir.

As vezes meu pai arrumava as nossas cobertas e apagava a luz do quarto antes de eu dormir e então o medo era bem maior. Eu não podia contar o que eu via.

E durante muitos anos da minha infância foi assim.

Meus pais discutiam muito por causa da bebida.

Aos finais de semana, íamos para a casa de um tio, irmão mais velho de meu pai.Com os primos brincávamos em cima dos pés de goiaba e tomávamos banho no rio. Meu tio não bebia Aconselhava o meu pai e era muito carinhoso comigo e meus irmãos.


Abusada,drogada e prostituidaOnde histórias criam vida. Descubra agora