Noite perfeita

84 0 0
                                    


Durante dois dias consecutivos, o vento fustigou as árvores da Praça das Flores,

o solo ficou juncado de folhas e gravetos, e vários objectos que haviam sido

escondidos para sempre no fundo de sacos de plástico mostraram-se por uma

última vez, rolando pelo pavimento. Mas esta manhã a mulher da Câmara desceu

do camião munida de uma vassoura comprida e varreu tudo o que encontrou à

sua frente para dentro de um carrinho de lata. No momento em que nos

cruzávamos, eu ouvia o som das suas passadas dando uma explicação ao mundo

– Esquecimento, esquecimento.

No entanto, essa não é a única lei que nos rege. Há cerca de três meses,

encontrava-me eu sentada na coxia de um cineteatro, de onde acabava de ser

transmitido um longo espectáculo de Verão, quando um homem vestido de

branco veio ao meu encontro, voando, de braços abertos – « Lembras-te de

mim?» Perguntou. Abraçámo-nos. O seu corpo estava tão leve que dançávamos

sem dar por isso, e essa leveza era de tal forma evidente que as câmaras

fixaram-nos, pousando o seu grande olho minúsculo sobre as nossas costas, ora as

minhas, ora as dele, enquanto rodopiávamos. Como tudo se passava

simultaneamente, à nossa volta algumas pessoas gritavam – « Vejam, vejam!

Olhem como o João de Lucena dança com a Solange de Matos...» E a acreditar

no que diziam, sobre a imagem dos nossos vultos, projectados no ecrã, deslizava

uma fina passadeira de letras. O homem leve perguntou de novo – « Lembras-te

de mim?» Então Gisela Batista, a protagonista da noite, veio até nós e exclamou

– « Que maravilha, toda esta gente se vai lembrar de vocês para sempre. Que

lindos que são, que lindos! Não parem, por favor. Olhem como sobre as vossas

cabeças a produção está a fazer cair uma montanha de estrelas...» E retirandose

do centro da história da noite, onde ela e só ela deveria estar, Gisela Batista

abriu os braços, com palavras de complacência e admiração – « Meu Deus! Que

linda lembrança vamos guardar...» E muitos nos aplaudiam. Mas nós

rodopiávamos indiferentes aos brilhos projectados sobre as nossas roupas, porque

sabíamos que estávamos a celebrar um encontro no interior do império minuto, e

havia vinte e um anos que na realidade não nos encontrávamos.

Então, perante aquela assistência, o que fazer da nossa lembrança privada?

Para onde iríamos reconstituir os dias que nos tinham separado? Naquele

momento, ao contrário das palavras que corriam à nossa volta, não nos

importávamos com o tom de solenidade que os outros atribuíam ao nosso

encontro. Tínhamo-nos transformado no centro das atenções sem que nada o

justificasse. Aquela era apenas uma noite de Verão, a cena em que havíamos

A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)Onde histórias criam vida. Descubra agora