Se insisto na questão do esquecimento, é talvez porque nenhum outro assunto
tenha sido tão importante quanto esse, ou talvez porque nem mesmo haja outro
assunto. Na verdade, penso nos dias que se seguiram ao episódio decorrido no
interior da garagem da Casa Paralelo, e creio que desse tremendo descuido,
seguido de sonegação, não sobejou o mais ligeiro motivo que nos leve a concluir
em sentido contrário.
Mas o que mais me intriga, passados vinte e um anos, é que todos tenhamos
estado tão próximo dos mesmos factos, que cada um de nós sobre eles tenha tido
acesso a informações diferentes, e que nunca esses dados se tenham cruzado. Já
sobre o momento, essa era a preocupação que me preenchia os dias. Gisela sabia
que o corpo havia saído da garagem envolvido numa carpete, por sua vez todo
esse volume seguira entalado dentro de uma carrinha, entre várias peças de
mobiliário como se se tratasse de uma mudança, e que os objectos pessoais da
Micaia haviam sido colocados dentro de um saco de plástico, com as bandas
agrafadas, tendo-se ouvido a porta da carrinha bater, por fim, de modo a
confundir-se o seu rumor com os ruídos próprios da manhã. Eu sabia porque
tinha assistido. A partir desse ponto, porém, só restavam perguntas.
Aquele embrulho tubular teria sido entregue a quem, depositado onde, em que
condições? Eu suspeitava de vários cenários, todos eles extravagantes e
incompatíveis com o que se deseja para o género humano. De resto, tudo o que
Gisela dizia desconhecer, eu desconhecia de verdade. As sopranos julgavam que
Madalena Micaia havia sido entregue à família, embora tivessem de dizer, para
conveniência de todos, que a cantora dos blues havia desistido, participando assim
de uma outra forma de mentira. Por sua vez, Gisela explicou ao Saldanha, com o
pedido de que difundisse como entendesse, que a cantora acabava de se despedir
por questões relacionadas com a sua família, da qual faziam parte mãe, pai,
numerosos irmãos e, por último, um filho. O Saldanha acabaria por dizer –
« Boas razões tinha o Julião para suspeitar daquela pessoa...» O maestro entrou
em estado de fúria, soltando punhadas em frente do piano. Ninguém deveria ter
adiado coisa nenhuma. João de Lucena não soube mais do que o Saldanha e do
que o Capilé. Mas soube por mim, e leu nos meus olhos que havia alguma coisa
mais que eu não queria dizer. De resto, caminhando pela Avenida da República,
de mãos dadas, ele achava que tinha sido um bem, adiar. Em toda a parte do
mundo se adiam espectáculos e o céu não cai.
E assim terminava a ronda da informação sobre os factos.
No essencial, porém, nós quatro conhecíamos a circunstância e o corpo da
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A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)
RomanceHá uma pergunta que percorre este romance de Lídia Jorge, da primeira à última página: quantas vítimas se deixam pelo caminho para se perseguir um objetivo? A ação do romance decorre no final dos anos 80 do século XX e invoca um tema de inesperada a...