DEZESSETE

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Se insisto na questão do esquecimento, é talvez porque nenhum outro assunto

tenha sido tão importante quanto esse, ou talvez porque nem mesmo haja outro

assunto. Na verdade, penso nos dias que se seguiram ao episódio decorrido no

interior da garagem da Casa Paralelo, e creio que desse tremendo descuido,

seguido de sonegação, não sobejou o mais ligeiro motivo que nos leve a concluir

em sentido contrário.

Mas o que mais me intriga, passados vinte e um anos, é que todos tenhamos

estado tão próximo dos mesmos factos, que cada um de nós sobre eles tenha tido

acesso a informações diferentes, e que nunca esses dados se tenham cruzado. Já

sobre o momento, essa era a preocupação que me preenchia os dias. Gisela sabia

que o corpo havia saído da garagem envolvido numa carpete, por sua vez todo

esse volume seguira entalado dentro de uma carrinha, entre várias peças de

mobiliário como se se tratasse de uma mudança, e que os objectos pessoais da

Micaia haviam sido colocados dentro de um saco de plástico, com as bandas

agrafadas, tendo-se ouvido a porta da carrinha bater, por fim, de modo a

confundir-se o seu rumor com os ruídos próprios da manhã. Eu sabia porque

tinha assistido. A partir desse ponto, porém, só restavam perguntas.

Aquele embrulho tubular teria sido entregue a quem, depositado onde, em que

condições? Eu suspeitava de vários cenários, todos eles extravagantes e

incompatíveis com o que se deseja para o género humano. De resto, tudo o que

Gisela dizia desconhecer, eu desconhecia de verdade. As sopranos julgavam que

Madalena Micaia havia sido entregue à família, embora tivessem de dizer, para

conveniência de todos, que a cantora dos blues havia desistido, participando assim

de uma outra forma de mentira. Por sua vez, Gisela explicou ao Saldanha, com o

pedido de que difundisse como entendesse, que a cantora acabava de se despedir

por questões relacionadas com a sua família, da qual faziam parte mãe, pai,

numerosos irmãos e, por último, um filho. O Saldanha acabaria por dizer –

« Boas razões tinha o Julião para suspeitar daquela pessoa...» O maestro entrou

em estado de fúria, soltando punhadas em frente do piano. Ninguém deveria ter

adiado coisa nenhuma. João de Lucena não soube mais do que o Saldanha e do

que o Capilé. Mas soube por mim, e leu nos meus olhos que havia alguma coisa

mais que eu não queria dizer. De resto, caminhando pela Avenida da República,

de mãos dadas, ele achava que tinha sido um bem, adiar. Em toda a parte do

mundo se adiam espectáculos e o céu não cai.

E assim terminava a ronda da informação sobre os factos.

No essencial, porém, nós quatro conhecíamos a circunstância e o corpo da

A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)Onde histórias criam vida. Descubra agora