Não sei quantos dias passaram, sei apenas que Gisela esperava por nós,
sentada na mesma cadeira sobre a qual a havíamos deixado.
Aparentava o ar de não ter saído da garagem. Fazia tanto frio na zona do fundo
que foi necessário colocar os quatro radiadores junto à balança. Despimo-nos.
Ela mesma nos pesou, preenchendo uns gráficos e de seguida pediu que nos
dispuséssemos em volta do piano. De repente, pressenti o que se iria passar. Eu
estava completamente submetida à sua ordem mental, amava o que ela amava e
detestava o que ela detestava, mas antevi o que iria acontecer e pareceu-me
excessivo. Senti, pela primeira vez, rondar um perigo cuja face eu não distinguia
mas sabia olhar-nos a partir de algum dos cantos daquela sala. Uma dúvida
assaltava-me – Como era possível que a música fosse uma arte tão libertadora,
de tal forma unida ao impulso da liberdade que ambas se confundiam, e entre
nós a música, o canto e a dança se tivessem tornado motivo de uma tensão quase
intolerável? Sim, como era possível? Eu ainda quis fazer a pergunta, quis dizer
umas palavras, mas já estávamos em fila, caladas, como se todas soubéssemos o
que iria acontecer e nos tivéssemos preparado. A tarde continuava sombria.
Gisela não tinha ligado as luzes e uma mancha de penumbra estendia um cone de
indefinição sobre nós, à volta do piano. Eu tinha a ideia de que a voz não partia de
Gisela de tal forma falava baixo, sem olhar para quem interpelava. Creio mesmo
que não cheguei a compreender as primeiras frases, só ouvi distintamente a
pergunta que dirigia a Maria Luísa – « Mas juras?» Ouvi a resposta da
interpelada, que jurou. De novo, Gisela – « Juras pela tua vida, pelo êxito da tua
vida? Juras pela integridade do teu corpo? Juras?» Gisela ficou à espera. « Juro,
Gisela, juro...» – respondeu de novo Maria Luísa, completamente submetida à
lógica da maestrina. E à medida que Gisela ia enunciando os objectos da nossa
renúncia, eu compreendia a pertinência desse acto, e encontrava razão no seu
procedimento. Eu também ia ficando do seu lado, também me ia submetendo ao
argumento que pairava atrás da sua inquirição sobre nós. Aquela era a minha
vez. Gisela dirigiu-me as mesmas perguntas e, quando chegou ao fim, eu não
sabia como poderia ter tido um laivo de relutância, minutos antes, no momento
em que o interrogatório tinha tido início. « Juras, Solange?» – perguntou-me.
« Juro» – respondi eu, rente à lógica de Gisela, perto dela, como a inscrição e a
pedra.
« Juro, Gisela, juro...» – disse também Nani. « Juras, Nani, que já despediste o
tipo da mota? E o pedestre? Já puseste a milhas o triste do pedestre?» Nani,
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A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)
RomanceHá uma pergunta que percorre este romance de Lídia Jorge, da primeira à última página: quantas vítimas se deixam pelo caminho para se perseguir um objetivo? A ação do romance decorre no final dos anos 80 do século XX e invoca um tema de inesperada a...