DEZ

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Não sei quantos dias passaram, sei apenas que Gisela esperava por nós,

sentada na mesma cadeira sobre a qual a havíamos deixado.

Aparentava o ar de não ter saído da garagem. Fazia tanto frio na zona do fundo

que foi necessário colocar os quatro radiadores junto à balança. Despimo-nos.

Ela mesma nos pesou, preenchendo uns gráficos e de seguida pediu que nos

dispuséssemos em volta do piano. De repente, pressenti o que se iria passar. Eu

estava completamente submetida à sua ordem mental, amava o que ela amava e

detestava o que ela detestava, mas antevi o que iria acontecer e pareceu-me

excessivo. Senti, pela primeira vez, rondar um perigo cuja face eu não distinguia

mas sabia olhar-nos a partir de algum dos cantos daquela sala. Uma dúvida

assaltava-me – Como era possível que a música fosse uma arte tão libertadora,

de tal forma unida ao impulso da liberdade que ambas se confundiam, e entre

nós a música, o canto e a dança se tivessem tornado motivo de uma tensão quase

intolerável? Sim, como era possível? Eu ainda quis fazer a pergunta, quis dizer

umas palavras, mas já estávamos em fila, caladas, como se todas soubéssemos o

que iria acontecer e nos tivéssemos preparado. A tarde continuava sombria.

Gisela não tinha ligado as luzes e uma mancha de penumbra estendia um cone de

indefinição sobre nós, à volta do piano. Eu tinha a ideia de que a voz não partia de

Gisela de tal forma falava baixo, sem olhar para quem interpelava. Creio mesmo

que não cheguei a compreender as primeiras frases, só ouvi distintamente a

pergunta que dirigia a Maria Luísa – « Mas juras?» Ouvi a resposta da

interpelada, que jurou. De novo, Gisela – « Juras pela tua vida, pelo êxito da tua

vida? Juras pela integridade do teu corpo? Juras?» Gisela ficou à espera. « Juro,

Gisela, juro...» – respondeu de novo Maria Luísa, completamente submetida à

lógica da maestrina. E à medida que Gisela ia enunciando os objectos da nossa

renúncia, eu compreendia a pertinência desse acto, e encontrava razão no seu

procedimento. Eu também ia ficando do seu lado, também me ia submetendo ao

argumento que pairava atrás da sua inquirição sobre nós. Aquela era a minha

vez. Gisela dirigiu-me as mesmas perguntas e, quando chegou ao fim, eu não

sabia como poderia ter tido um laivo de relutância, minutos antes, no momento

em que o interrogatório tinha tido início. « Juras, Solange?» – perguntou-me.

« Juro» – respondi eu, rente à lógica de Gisela, perto dela, como a inscrição e a

pedra.

« Juro, Gisela, juro...» – disse também Nani. « Juras, Nani, que já despediste o

tipo da mota? E o pedestre? Já puseste a milhas o triste do pedestre?» Nani,

A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)Onde histórias criam vida. Descubra agora