TRÊS

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E agora, em vez de pensar na Noite Perfeita, principalmente naquela

passagem do seu conto magnífico, no momento em que cada uma de nós,

segundo as palavras da concorrente, se ia aproximando do piano, em vez de tudo

isso, e só isso, eu regresso aos dias em que Murilo se sentava a meu lado, na sala

de jantar da hospedaria, para desacreditar a pessoa de Gisela Batista.

Regresso a esses dias, e penso que Murilo Cardoso foi o responsável pela

expectativa criada em torno da sua figura. Não era em vão que se lhe referia

como uma devassa, pintando-a como uma cantora de cabaré ardilosa, capaz de

ir desencantar jovens sopranos às salas do Conservatório para tentar limpar o seu

percurso mundano e ganhar a credibilidade que não merecia. Conhecendo

Murilo como conhecia, eu ia fazendo os meus descontos mas, ainda assim,

quando desci do autocarro 49 e comecei a subir a rampa que conduzia à Avenida

do Restelo, levada pelas irmãs Alcides, imaginava ir ao encontro de uma pessoa

estroina, com olhos pisados e bafo a vinho. Droga, talvez umas pitadas de droga,

talvez um cheiro a prostituição e cama. Um mistério de sujidade que, na minha

curta experiência de dezanove anos, eu sabia existir mas não deslindar. Supunha

uma qualquer actividade obscura, sem disciplina nem regras, um deboche. E na

melhor das hipóteses, imaginava uma Billie Holiday portuguesa, nascida num

bordel, uma cantora destinada a transformar-se num mito que, só por injustiça,

ainda não se tinha revelado.

Era assim que eu pensava, e no entanto, todas as indicações que as irmãs me

iam dando funcionavam em sentido contrário. As irmãs Alcides não só a

admiravam como depositavam na sua pessoa uma esperança sem limites. Uma

das sopranos, quando nos aproximámos do local, referiu mesmo uma certa

excepção no seu comportamento, o que revelava até que ponto seria uma figura

casta. Nani disse – « Gisela só tem um problema. De vez em quando, saca do seu

cigarro e fuma-o diante de quem quer que seja. Não o devia fazer...» E quando

atravessámos o jardim que conduzia à garagem da Casa Paralelo, as irmãs

manifestaram até uma espécie de veneração que me parecia amedrontada.

Reparei mesmo que Nani colocava o dedo na campainha e retirava-o, como se

receasse que o impulso se prolongasse de mais. O que significava que eu

dispunha de dois tipos de informação distinta, ou mesmo contraditória, e no

momento em que a porta da garagem começou a correr e não havia ninguém

que a abrisse, compreendi que tinha vindo ao encontro de uma figura, no

mínimo, intrigante, ou até mesmo misteriosa.

Passado todo este tempo, regresso a esse momento como se tivesse ocorrido

A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)Onde histórias criam vida. Descubra agora