E agora, em vez de pensar na Noite Perfeita, principalmente naquela
passagem do seu conto magnífico, no momento em que cada uma de nós,
segundo as palavras da concorrente, se ia aproximando do piano, em vez de tudo
isso, e só isso, eu regresso aos dias em que Murilo se sentava a meu lado, na sala
de jantar da hospedaria, para desacreditar a pessoa de Gisela Batista.
Regresso a esses dias, e penso que Murilo Cardoso foi o responsável pela
expectativa criada em torno da sua figura. Não era em vão que se lhe referia
como uma devassa, pintando-a como uma cantora de cabaré ardilosa, capaz de
ir desencantar jovens sopranos às salas do Conservatório para tentar limpar o seu
percurso mundano e ganhar a credibilidade que não merecia. Conhecendo
Murilo como conhecia, eu ia fazendo os meus descontos mas, ainda assim,
quando desci do autocarro 49 e comecei a subir a rampa que conduzia à Avenida
do Restelo, levada pelas irmãs Alcides, imaginava ir ao encontro de uma pessoa
estroina, com olhos pisados e bafo a vinho. Droga, talvez umas pitadas de droga,
talvez um cheiro a prostituição e cama. Um mistério de sujidade que, na minha
curta experiência de dezanove anos, eu sabia existir mas não deslindar. Supunha
uma qualquer actividade obscura, sem disciplina nem regras, um deboche. E na
melhor das hipóteses, imaginava uma Billie Holiday portuguesa, nascida num
bordel, uma cantora destinada a transformar-se num mito que, só por injustiça,
ainda não se tinha revelado.
Era assim que eu pensava, e no entanto, todas as indicações que as irmãs me
iam dando funcionavam em sentido contrário. As irmãs Alcides não só a
admiravam como depositavam na sua pessoa uma esperança sem limites. Uma
das sopranos, quando nos aproximámos do local, referiu mesmo uma certa
excepção no seu comportamento, o que revelava até que ponto seria uma figura
casta. Nani disse – « Gisela só tem um problema. De vez em quando, saca do seu
cigarro e fuma-o diante de quem quer que seja. Não o devia fazer...» E quando
atravessámos o jardim que conduzia à garagem da Casa Paralelo, as irmãs
manifestaram até uma espécie de veneração que me parecia amedrontada.
Reparei mesmo que Nani colocava o dedo na campainha e retirava-o, como se
receasse que o impulso se prolongasse de mais. O que significava que eu
dispunha de dois tipos de informação distinta, ou mesmo contraditória, e no
momento em que a porta da garagem começou a correr e não havia ninguém
que a abrisse, compreendi que tinha vindo ao encontro de uma figura, no
mínimo, intrigante, ou até mesmo misteriosa.
Passado todo este tempo, regresso a esse momento como se tivesse ocorrido
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A noite das mulheres cantoras (Lídia Jorge)
Roman d'amourHá uma pergunta que percorre este romance de Lídia Jorge, da primeira à última página: quantas vítimas se deixam pelo caminho para se perseguir um objetivo? A ação do romance decorre no final dos anos 80 do século XX e invoca um tema de inesperada a...