três

167 46 57
                                    

Em algum momento eu briguei feio com Elizabeth, e desliguei o celular. Não queria que nada mais me incomodasse; queria entrar no meu quarto e fingir que o mundo não existia. Minha mãe estava em casa no dia, e apenas me deixou quieta. Sem perguntas.

Então, ainda perdida em meu devaneio, me ocorreu que eu havia pegado o caderno preto — agora cheio de adesivos azuis — de Charlie para ler. Não perderia a oportunidade de passar os olhos por sua letra, que não havia visto até aquele momento.

A primeira página tinha apenas alguns desenhos, e fotos coladas. Pude ver ele com sua mãe na maioria delas, já que ela era a sua parente mais próximas. Nunca soube nada sobre seu pai, nem sobre a existência de nenhum irmão, mas havia fotos onde um homem moreno de blusa verde e um garotinho, mais novo que Charlie, apareciam na mesma foto que ele, sorridentes. Decidi pular essa página.

O texto da seguinte começava com seu típico:

Pode entrar, Julie!

Porque eu sei muito bem que você deve ter me pedido para ler o caderno da capa preta, e eu com certeza deixei. Na verdade, antes de ter o caderno em mãos (que, em minha mente, deveria ser azul) eu já sabia que você o leria. Se qualquer outro ser humano pusesse as mãos nesse caderno/diário/livro de memórias, eu surtaria e me sentiria profundamente violado. Mas eu já conto tudo pra você mesmo.

E quero contar mais uma coisa: tenho medo. Como nunca senti na vida antes. Na verdade, a minha situação nunca me incomodou de tal modo, mas agora eu me sinto ironicamente desprotegido e incrivelmente despreparado para o meu fim.

Você sabe muito bem que sempre pus na minha cabeça que eu iria morrer, inevitavelmente, de câncer ou não. Afinal, é uma coisa natural. Acontece pra todos. Mas e agora, o que eu faço? Simplesmente não quero. Prefiro ficar aqui, do seu lado, procurando figurinhas azuis para colar num caderno preto; contando histórias, dividindo memórias.

Eu não quero ir. Não me deixe ir.

Eu, inconscientemente, chorava baixinho. Todos os dias me esforçava para saciar os pequenos desejos de Charlie, mas nesse dia em específico, falhei miseravelmente. Não havia um modo, por maior que fosse minha força de vontade, de salvá-lo. Não era uma médica, cientista, gênia, nem uma maga com superpoderes. E, apesar de saber que aquele pedido — "não me deixe ir" — fosse impossível, eu me sentia profundamente mal por não poder atendê-lo.

Naquele momento, minha mãe bateu na porta desesperadamente - quase podia sentir seu coração disparado, as mãos tremendo.

— Julie! Julie! Corra, Julie!

Abri a porta, procurando acalmá-la, mas ela repetia para que eu me apressasse.

— Charles está morrendo e pediu para te ver! Ande!

Aquelas palavras foram como um soco no meu estômago. Tudo parecia de mentira. Precisava correr, mas minhas pernas não queriam entrar em ação. Mesmo assim, as obriguei a funcionar - uma passo atrás do outro, porém rápido.

Eu corria feito uma desesperada, uma bêbada. A cidade era quase inexistente; ignorava todas as pessoas ao meu redor. Mesmo que o hospital fosse perto de minha casa, minha mente custava a achar o caminho. Eu estava tonta, completamente desnorteada.

Ao contrário do que eu esperava, foi tudo muito lento. Eu vi o carro, perfeitamente. Previ o que aconteceria, mas não me mexi. Lembrei-me de Charlie; do caderno, das fotos. Pode entrar, Julie! Pensei em seu sorriso, e seus dois últimos pedidos: não deixá-lo ir e me ver pela última vez. Dois pedidos em que falhei miseravelmente em cumprir.

***

Estou agora no hospital, mas não ao lado de Charlie. Eu havia sido atropelada, e não me encontro num bom estado. Minha visão está turva, embaçada; e minha voz quase não funciona. Não sinto minhas pernas, mas sinto o sangue em meus braços. Minha mãe está desesperada ao meu lado, rezando. Com muito esforço, pego sua mão e a trago para perto de mim. Digo em seu ouvido:

— Diga a ele que eu peço desculpas... não posso salvá-lo, ao menos vê-lo... diga a ele para aprender a andar de skate, e arrumar uma namorada logo. Fale pra me visitar sempre com uma flor achada e uma boa história. Diga que o amo.

Foram minhas últimas palavras, antes que tudo se convertesse em escuridão e o mundo não existisse mais para mim.

Foram minhas últimas palavras, antes que tudo se convertesse em escuridão e o mundo não existisse mais para mim

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

eu chorei

não tô bem

TIMELESSOnde histórias criam vida. Descubra agora