Parte 3 - Transição

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 Quando resolvi escrever sobre o que vinha acontecendo em nossas vidas, achei que não seria prudente revelar nossos nomes. Pensei na segurança daqueles que estão ligados a nós pelo sangue, mas que não são divindades, caso alguém do governo, um dia, encontrasse meus textos.

No entanto, hoje me sinto mais segura. Sinto que posso me apresentar devidamente, assim como ao meu companheiro e demais pessoas que viríamos a conhecer depois do encontro com a loira e a luta contra a divindade caçadora.

Eu sou Jéssica e meu companheiro se chama Leon. A loira, cujos olhos são especiais, apresentou-se como Ginger Ale, o que, particularmente, achei muito estranho. Não cheguei a perder muito tempo com essa informação, afinal, Leon estava muito ferido. Mesmo com parentes espalhados pelo país, eu poderia dizer com grande convicção a seguinte frase: Só tenho a ele. Vê-lo naquele estado me deixou muito nervosa e, estando assim, eu até demorei em assimilar o que Ginger havia dito. Se ela estivesse correta, eu teria mais uma pessoa importante em minha vida em breve.

Minutos depois do pedido de ajuda pelo celular, ouvi um helicóptero se aproximando. Havia um grande espaço aberto fora do prédio e foi lá que ele pousou, liberando de seu interior alguns homens trajando o mesmo uniforme de Ginger e uma maca. Era um helicóptero ambulância que levou a todos nós para longe daquele lugar; longe de onde havíamos construído nossa casa e que já não era mais segura.

***

Eu não sabia onde estávamos, mas sabia muito bem que era uma instalação médica bem completa e isolada, pois não conseguia ouvir o som ambiente do movimento da cidade e a maioria das pessoas ali usava uniformes brancos que seguiam a mesma linha daquele de Ginger. Ela havia garantido que estaríamos seguros, então procurei não me ater a mais detalhes que não fossem o estado de saúde de Leon.

– Bom dia – eu disse quando ele finalmente abriu os olhos depois de três dias.

– Bom dia – ele respondeu com um pequeno sorriso que logo se transformou numa feição de dor ao se mexer. – Você está bem?

– Estou bem graças a você e algumas pessoas com quem tem mantido contato sem eu saber – fingi que estava brava, o que fez ele rir.

– Eu ia lhe contar quando aquele cara apareceu.

– Eu sei. Não se preocupe.

– E o que mais você já sabe? – ele ofereceu sua mão para que eu a segurasse e não hesitei em fazê-lo.

– Não muito. Ginger disse que era melhor esperar que você contasse tudo.

E assim aconteceu. Era raro nos separarmos quando deixávamos nosso esconderijo, muito mais raro Leon sair sem mim. No entanto, alguns dias antes do ataque da divindade caçadora, eu senti um mal-estar e meu companheiro pediu que eu ficasse de repouso enquanto ele comprava nossas coisas; quando conseguíamos dinheiro através de um trabalho temporário, comprávamos e não roubávamos. Foi nesse dia que Ginger apareceu para ele, apresentando-se como uma divindade protetora e convidando-o para fazer parte do grupo. De início ele se sentiu incomodado, desconfiado de que o governo estivesse fazendo uso de outros métodos para se aproximar das divindades. A confiança na mulher só foi estabelecida quando ela revelou seus olhos e disse saber o porquê de eu ser caçada.

Não só o meu poder especial que parece ser raro, mas o novo ser que estava em meu ventre. Acreditando que alguns poderes podem se repetir nos filhos gerados, o governo queria a mim para, depois, tomar meu filho. Uma criança criada para ser uma arma seria um perigo muito maior do que divindades caçadoras. E como o governo descobriu que estava grávida? Ginger disse que é uma rastreadora nesse grupo de divindades protetoras e que o governo também comanda divindades com poderes semelhantes ao dela.

O governo possuía um arquivo com seus alvos mais importantes e eu me tornei um deles. Devido a isso, Leon prometeu pensar na proposta. Dias se passaram até que ele resolveu conversar sobre o assunto comigo e fomos atacados pela divindade caçadora do vento.

– É certo que eles não são do governo, Jéssica – disse Leon. – Ou então já teriam nos separado. Não posso ficar longe de você e do bebê.

– Eu também não quero ficar longe de você. Mas o que é esse grupo de divindades protetoras? Tenho medo. O que você vai ter que fazer? – perguntei enquanto apertava a mão dele. Seus olhos marejaram quando disse a palavra separado.

– Terei que lutar – ele respondeu, sério.

– Como assim lutar?

Neste momento, Ginger apareceu usando seus típicos óculos escuros e respondeu no lugar dele.

– Vocês foram escolhidos para fazer parte de um grupo formado apenas de divindades para proteger tanto as próprias divindades como aqueles sem poderes especiais que ficam a mercê de quem não sabe usar seus dons para o bem. Não vou negar que também precisamos de você por causa de seus poderes, mas mais que isso, precisamos de você como tutora. Só um desenhista para ensinar outro desenhista.

– Desenhista? – questionei.

– Assim como sou uma rastreadora, você é uma desenhista – ela deixou a cabeça tombar para o lado direito e jogou os ombros para cima. – As pessoas acabam criando apelidos para os poderes das divindades.

– E por que precisam de mim como tutora?

– Quero garantir a sua segurança, Jéssica, mas há outros que protejo. Só poderei dar mais detalhes se aceitarem vir comigo. Eu os levarei para o meu país, local onde fica nossa base principal. Lá nosso grupo foi criado, pois naquele lugar o governo iniciou o uso de divindades para caçar seus semelhantes.

– Nós aceitamos a proposta, Ginger. Só não se esqueça de que pessoas podem se ferir se tentarem nos passar para trás – disse Leon com um sorriso torto. Mesmo sem saber que eu havia feito uma promessa de não usar meus poderes contra alguém, ele não perdeu a chance de ameaçá-la. Não me incomodei com isso, pois sabia que era uma forma de ele nos preservar.

– Não se preocupe, Leon. Estou do lado de vocês e logo conhecerão outras divindades que lutarão ao seu lado – disse Ginger antes de sacar seu celular. Encontrou o contato que procurava, clicou para fazer a ligação e, assim que foi atendida, prosseguiu. – Estejam a postos. Leon e Jéssica voltarão conosco. Não! Não poderemos passar no drive thru depois de sairmos daqui. Se quiser comer essas porcarias, vá antes de vir nos buscar, entendido?

Esta conversa me deixou curiosa, afinal, no meio de uma situação como aquela, quem haveria de perguntar se poderia comprar fast food antes da nossa viagem? No fundo achei engraçado e Ginger percebeu isso, pois disse:

– Logo você a conhecerá. Ela cuidará de nossa proteção. Sinto muito por não poderem levar nada do que possuem na casa de vocês, mas lá não é mais seguro. Compensaremos o que puder ser compensado.

– Muito obrigada – agradeci e Leon só consentiu com a cabeça.

Ginger nos deixou à vontade por um tempo. Conversamos muito sobre essa transição; mudar de país não seria fácil, mas era nossa chance de voltar a viver com um pouco mais de tranquilidade. Não teríamos mais que viver sozinhos. Ainda mais agora com a notícia da minha gravidez. Cogitei fazer um exame para confirmar, mas uma enfermeira apareceu nesse momento e disse que Ginger nunca errava e que, em mais alguns meses, poderia até ver com seus olhos especiais se seria um menino ou uma menina.

Leon declarou a esperança de que viesse a ser uma menina enquanto a enfermeira o liberava do soro e refazia os curativos. Passamos toda a tarde ali até Ginger chegar com o anoitecer e dizer:

– Estamos prontos. Vamos?

Eu sou a caça (em hiato)Onde histórias criam vida. Descubra agora