Prelúdio - Presentes de Natal

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Eu não saberia há quanto tempo estou vagando pelas ruas, não fossem os preparativos para festas de natal tomando conta das vitrines de lojas, janelas e portas de cada casa. Enfeites cobrem as miríades de cortiços que se espalham como leite derramado pelos morros. A brancura da neve se mistura ao negrume da fuligem, componente tão comum ao ambiente da pequena cidade onde nasci, o que torna o céu sempre melancólico e as paredes cinzentas.

 Eu resisto. O frio é como um fantasma que me abraça com o gosto de ferro; ferro das correntes que impedem meu corpo se mover. A fome não é mais a simples ausência de comida no estômago, ela se tornou um verme eterno que me devora por dentro, se alimenta do meu vazio. Mas eu resisto.

 Encolhida em um beco, aquecendo-me em meio aos sacos de lixo, olhava para o céu, procurando as estrelas, a fim de fugir do incansável pisca-pisca artificial espalhado por toda a cidade. Procurando as estrelas para me refugiar nas lembranças dela. O passado só existe quando olhamos para ele... Quando olhamos para o céu, estamos olhando para o passado. Mas o clima ocultava o céu de mim. Olhar para o passado se tornava cada vez mais difícil, tudo era turvo, embaçado coberto por uma camada de negrume que me era impossível dispersar. Tudo ficava cada vez mais distante, como um sonho daqueles que não sabemos se realmente tivemos.

 Jamais foi divulgada a morte de Juliet. Seu corpo desapareceu junto com sua lembrança aos moradores da cidade. Sua família mudou-se para a cidade grande, apagando qualquer rastro da existência da filha que supostamente enlouquecera anos atrás. Como não houve um enterro, fiz uma homenagem a ela. Eu não possuía sequer um pertence de Juliet, então fui ao cemitério e fiz um arranjo de flores ao redor de uma pedra, onde escrevi seu nome. Sob o céu aberto, do jeito que ela iria gostar.

 Os dias que se seguiram foram mortalmente chocantes para mim. Prometi ser forte, mas me sinto cada vez mais debilitada com a realidade que vejo do lado de fora do Manicômio Celeste para Damas Lunáticas. Não há lugar para mim além dos becos onde as pessoas jogam seus lixos. Eu me tornei o que chamam de pessoa invisível – ninguém quer notar que eu existo e estou aqui.

Quer dizer, ninguém exceto alguns grupos de jovens que sentem algum tipo de prazer em espancar garotas. Eu deixo rolar. Comparados aos médicos e guardas do Manicômio Celeste, esses moleques parecem umas flores. Eu me deito sem nenhuma expressão no rosto e o sorriso deles desaparecem do rosto junto com o vigor dos pontapés, e vão embora desapontados. Pfff, brochas.

Mas eu sou a única garota resistente a esse tipo de dor. Testemunhei espancamentos de garotas quase até a morte. A imagem era como um caminhão atropelando um pequeno pássaro bonito. A maioria dos casos eram pares de garotas que passeavam de mãos dadas, ou faziam carinho uma à outra.

Lembrei-me das grades do Manicômio e rapidamente eu percebi que o pior tipo de prisão é aquele em que as outras pessoas nos colocam, dentro de suas mentes.

Se você está se perguntando se eu curei as pobres meninas espancadas, desculpe desapontá-los. Desde a perda de minha Juliet, eu não curei novamente. Não que eu não quisesse. Mas foi devido à minha habilidade que fui parar no manicômio. E eu ainda estou foragida. Não posso chamar atenção das autoridades. Caso ainda não tenha mencionado, meu rosto está estampado em cartazes ao lado de alguns dígitos numéricos de recompensa.

Não sou a heroína que você deve ter imaginado.

Olhei para o outro lado e as famílias tradicionais e rechonchudas entoam canções de natal, carregando mais pacotes de presentes do que conseguem. E mais ao centro da cidade, todo tipo de atrações clandestinas tenta chamar a atenção do máximo possível de pessoas.

Foi uma dessas atrações que me levou fugir para a floresta que circunda nossa pequena cidade. Eu me senti tão envergonhada de quem me tornei que busquei as árvores altas para me esconder das estrelas. De alguma forma, parecia que Julet estava lá em cima, por trás do manto de neve e fuligem, olhando decepcionada para mim. Talvez ela estivesse se escondendo atrás da cortina negra para não ter que encarar a covarde que a poderosa aqui se tornou. Eu não pude ser quem ela me pediu. Não pude fazer o que ela esperava de mim. Não depois do que vi, não depois de ver o senhor Gull.

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⏰ Última atualização: Dec 25, 2013 ⏰

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