Capítulo 4

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"Acabei com tudo, escapei com vida. Tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída. Mas saí ferido, sufocando o meu gemido. Fui o alvo perfeito, muitas vezes no peito atingido."

Fera Ferida – Roberto e Erasmo Carlos


Filippo

Sinto uma forte dor em minha cabeça. Abro os olhos com dificuldade e vejo o carro pegando fogo. Eu estou bem distante dele e há ambulâncias e muitas pessoas próximas a ele. Vejo minha mãe gritando e meu pai abraçando-a, tentando acalmá-la. Levanto-me com dificuldade e caminho em direção aos meus pais, minha cabeça está sangrando e um homem me interrompe no meio do caminho. Ele me leva para dentro de uma das ambulâncias, mas meus pais ainda não me veem.

- Mãe! – eu grito e ela olha para trás.

Nesse mesmo momento o carro explode, as pessoas ficam ainda mais desesperadas e eu acordo sobressaltado.

Tenho esse mesmo sonho praticamente todas as noites e passo as horas seguintes pensando em como esse dia mudou a minha vida e a da minha família. Nós morávamos em Milão, na Itália, e estávamos indo passar o final de semana na nossa casa de praia. Minha mãe estava muito feliz, pois seria o nosso primeiro final de semana junto com o meu pai depois de muito tempo.

Meu pai sempre foi muito rico e com isso ele raramente podia deixar o trabalho e ficar conosco. Em compensação, minha mãe nunca trabalhou na vida, mas ainda assim, meu irmão e eu éramos criados praticamente por nossas babás.

Pietro, meu irmão mais velho tinha dez anos quando nós sofremos o acidente e eu apenas cinco. Desde que eu consigo me lembrar, minha mãe nunca quis um segundo filho, e é claro que eu nunca fui o preferido dela por diversos motivos. Eu gostava de mexer em tudo, desenhar nas paredes, correr e jogar bola enquanto o Pietro ficava sentado com seus livros e desenhos. Ele era o obediente e eu o mal educado. Ele seguia as regras e eu fazia questão de quebrá-las. E por isso eu continuo vivo e ele não.

No dia do acidente minha mãe estava gritando comigo mandando que eu me sentasse direito e colocasse meu sinto de segurança. Enquanto Pietro estava sentado atrás dela com seu cinto afivelado, eu queria sentar no meio para ver a estrada. De tanto ela gritar, meu pai virou para trás para me mandar colocar o cinto e não viu que um carro passava pelo cruzamento em alta velocidade. Quando minha mãe o avisou, já era tarde de mais. Nós batemos e o carro capotou várias vezes. Eu fui cuspido para fora do carro pelo vidro da frente, pois estava sem o cinto de segurança. Meus pais conseguiram sair do carro alguns minutos depois, mas Pietro estava desacordado e não conseguiu.

Quando o carro explodiu, ele ainda estava preso lá dentro e os bombeiros tentavam resgatá-lo. Mas essa não foi a pior parte para mim. Eu estava ferido, meu irmão estava morto e eu ainda ouvi minha mãe dizer no hospital enquanto chorava sobre o meu corpo:

- Por que, meu Deus? Se era para levar um dos meus filhos, por que não levou o Filippo?

Até hoje ela jura que não disse aquilo, mas eu sei muito bem o que eu ouvi e o comportamento dela ao longo dos anos só me provou que eu não havia imaginado.

Os próximos cinco anos da minha vida foram um pesadelo. Todos queriam que eu agisse como o Pietro, quando eu queria fazer justamente o contrário. Aos poucos fui entendendo que seria melhor para mim se eu me comportasse como eles queriam, pois assim eu não apanharia e ainda ganhava presentes.

Quando eu completei dez anos, eu era uma nova versão do Pietro e ainda melhor. Pois para os meus pais eu agia como o Pietro, para a minha babá eu agia como filho dela. Para a minha avó eu agia como meu falecido avô que eu nem conheci. Aos poucos eu fui aprendendo a identificar o que cada pessoa queria que eu fosse e eu me tornava exatamente o que elas desejavam.

DesesperadamenteOnde histórias criam vida. Descubra agora