Conto 5 - vida longa à sereia

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Por: SanCrys



Ela viu a vida através do vidro.

Desde sempre. 

Não lembrava-se da vez em que foi aprisionada naquele lugar. Talvez, quando ela ainda era uma sereia bem pequena, de cauda com poucas nadadeiras. Foi tirada da água salgada e posta em um tanque com água doce. 

Ela fazia parte do circo, como uma atração especial, a "aberração" que todos pagavam para ver. 

Eudora, assim os humanos a chamavam. 

A caixa de vidro com água era o seu mundo. Através dela, a sereia fora contemplada com o todo tipo de olhar. Repulsa, surpresa, descrença, medo... Estava separada deles por meio do imutável vidro. Não era preciso que Eudora fizesse nada. Apenas existir para causar o espanto no rosto das crianças, jovens e velhos. 

Via rostos diferentes todos os dias, e a tristeza reinava em seu coração, dentro daquela pequena caixa de vidro.

Ela não sabia o que era a vida, até que ele trouxera à ela.

Era um rapaz magro, mas não era fraco. Era um dos trabalhadores do circo. Era responsável por alimentá-la e trocar a água de seu tanque. Tinha lá a sua beleza e simpatia. Ela nunca conseguiu ouvi-lo através do vidro, mas ele sempre estava lá. Falando sem parar, contando histórias, lhe fazendo companhia. Diferente dos olhos dos outros que visitavam o circo, havia algo cálido em seu olhar que aconchegava o coração da sereia.

Um dia, o rapaz viera até ela com uma ideia insana. Tirá-la do circo e lhe mostrar o mundo.

Eudora muito temeu aquela ideia. Não fazia a mínima ideia do que era viver. A caixa era o único abrigo que conhecia. Mas ele não desistiu. Roubou-a do circo na calada da noite. Acomodou-a em uma carroça, cobriu-a com uma lona, e fugiram. Era uma viagem sem retorno. 

Com muito esforço, o rapaz apanhou-a nos braços, e mesmo fazendo um enorme esforço por causa da grande e pesada cauda da sereia, levou-a à beira da praia. Ainda segurando-a nos braços, mostrou para ela aquilo que ela nunca havia contemplado em sua vida. A beleza do nascer do sol tocando as águas plácidas do oceano.

Eudora, soube, naquele instante, que ela não desejava mais retornar para a sua caixa de vidro. Nos braços dele, havia encontrado a liberdade.

— Essa história é mesmo verdade, vovó Eudora? — questionou uma criança sentada aos pés da cadeira de balanço.

A velha senhora suspirou, olhando para um amontoado de retratos sobre a prateleira na lareira. Fotos de um casal jovem que sorria diante de uma capela — uma linda noiva de cabelos vermelhos e um rapaz de beleza modesta —, outra foto mostrando o mesmo casal, agora com filhos, e em outra moldura havia a foto dos filhos de seus filhos. Várias memórias fotografadas e bem guardadas.

— É claro que é verdade, minha menina — ela respondeu calmamente. — Eu soube que essa sereia até mesmo casou-se com o rapaz do circo.

— E como a sereia perdeu a cauda e se casou? — perguntou um menino.

— Bom, mágicas acontecem para quem acredita — disse a velha senhora.

— Vovó, a senhora é a sereia Eudora? — novamente, a menina questionou-a. — É que vocês duas tem o mesmo nome.

— Isso é segredo, minha netinha — a vovó piscou um dos olhos.

Após isso, os pais das crianças vieram buscar os filhos. Os netos se despediram da avó, ansiosos pelo restante da história intrigante da sereia Eudora.

— Mamãe adora a história dessa sereia — disse o filho dela. — Contava para mim também, quando eu tinha a idade de vocês.

Assim que a casa silenciou-se, Eudora sacolejou-se suavemente na cadeira de balanço. Pegou uma das molduras sobre a mesinha de centro, e contemplou com um sorriso no rosto enrugado, a face do homem que lhe trouxera, não somente a liberdade, como também o amor.

— Obrigada por salvar-me daquela caixa de vidro. Obrigada por fazer-me ver o nascer do sol. Obrigada por me dar esta vida, meu amor. Muito obrigada.

O beijo da sereia e outros contosOnde histórias criam vida. Descubra agora