Lembro-me de ter conhecido Sibi assim que ela nasceu. Era frágil. No meio de tantos "bebezinhos" tão parecidos achei-a a mais bonita. Ver o nascimento foi emocionante, pois sabia de todas as complicações, de todo o esmero necessário para a natureza trazer vida a mais um ser. Só de olhar para ela previ que faria coisas boas, era fácil perceber isso, diferente de outros que não sabemos o que esperar. O lugar não era dos melhores para se nascer, o governo não fornecia bons subsídios e a infraestrutura era precária. Porém, eu sabia que podia ajudar alguém e escolhi Sibi.
A alimentação era precária e tinha de ser dividida entre muitos, mas eu separava um algo a mais para Sibi. Carinho e atenção eram escassos no local, mas fiz questão que isso não ocorresse com minha escolhida.
- Seu João, as outras também precisam disso, distribua igual - dizia-me o chefe do setor.
Sibi não me decepcionou nem um dia sequer, crescia vistosa. Ainda jovem percebi que solidariedade e humildade destacavam-se nela, mesmo com meus mimos, tudo que ela recebia de bom devolvia em dobro.
Quando alcançou a idade para sair daquele lugar, acabou seguindo o destino da maioria, não tinha como escapar, fazia parte do sistema. Foi viver em um local pior, em meio à rua, diferente das terras paradisíacas onde moraram seus antepassados. Viver em uma grande metrópole naquelas condições não passava de uma subsistência solitária e cinzenta, sem prazeres nem esperança. Eu estava de mãos atadas, não podia fazer muito por ela. Quando conseguia passava ver como estava, averiguava se não havia sofrido maltratos. Os transeuntes que por ali passavam normalmente a ignoravam, alguns tinham desprezo, outros um preconceito descabido. Por mais incrível que pareça sua simples existência incomodava algumas pessoas.
Minha Sibi passou fome e sede. Ocupava um canto da calçada, seu lar, mas os comerciantes achavam aquilo absurdo.
- Incomoda a propaganda e no final afasta os clientes - me disse um deles.
Nunca entendi esse preconceito, era mesquinho demais, surreal. Se eu pudesse tirava ela dali, mas não tinha como, estava crescida e a rua era o se lugar. O jeito que Sibi enfeitava-se me agradava, ela era exuberante, linda de morrer. Por isso me escandalizava saber que até isso incomodava alguns que ali viviam ou passavam.
- Eu não entendo! Vocês deveriam agradecer a presença dela. Nem tudo é dinheiro, deixem ela em paz. Ela só faz o bem para os outros - respondia eu as reclamações.
Tudo se complicou quando ficou nítido que Sibi teria filhos.
- Imagina a sujeira, João. Vocês têm de fazer alguma coisa. Isso é inaceitável, vai dar trabalho para todos. Esse local é impróprio para ela. Poxa, é uma região de comércio, não queremos ela por aqui. Vamos fazer um abaixo assinado, um pedido para as autoridades.
A pressão era grande. Jurei para Sibi que os filhos dela teriam uma vida melhor. Garanti que levaria eles para o paraíso perto do mar de onde vinha toda sua linhagem.
Houve quem ameaçasse Sibi de morte e agora isso me amargura. Sinto-me culpado, pois vi tudo isso acontecer e no final fiz pouco. Como pude ser tão relapso. Fui eu que encontrei Sibi esmorecida, definhando na calçada. Obviamente tinha sido envenenada. Não havia o que fazer e minha menina morreu.
Aprendi muito com essa tragédia, decidi que podia fazer mais. Estudei e me fiz doutor, pois era o que todos diziam:
- Só a educação muda isso, João.
Passaram-se muitos anos e fui chamado para falar sobre Sibi e muitas como ela. Um evento importante e eu já velho, no fim de minha carreira. Na plateia estavam boa parte daquelas pessoas que desprezaram e abusaram de Sibi, até mesmo alguns suspeitos pelo sorrateiro assassinato.
- Nesse dia memorável onde finalmente vocês dizem se importar com minhas meninas, que sempre cuidei com dedicação, quero falar sobre Sibi. Sei que muitos aqui a conheceram, mas obviamente não vão se lembrar. Eu costumava chamá-la de minha garota. Ela veio de uma região do Rio de Janeiro, sua espécie é nativa de lá. Eu sempre soube que ela seria frondosa, que teria floradas intensas, que reteria muito da poluição, que traria sombra e conforto térmico. Tudo isso no pior ambiente para ela, com solo compactado, fumaça tóxica, calor e até mesmo ataques de pedestres e cidadãos de pouco conhecimento. A maioria a conhecia por sibipiruna, meu colegas gostavam de falar seu nome completo Poincianella pluviosa var. peltophoroides, mas para mim ela era Sibi. Vocês podem achar absurdo, mas posso compará-la a Jesus, a Gandhi, ou outros sábios, pois, assim como eles, ela dedicou-se a trazer o bem, mas recebeu indignação, incompreensão e violência. Muitos dizem que se preocupam com as árvores, com o que elas representam e fazem, mas existe muita hipocrisia, pois no final vale mais a fachada do comércio livre de galhos, a calçada e calhas sem sementes, flores e folhas. Reclamam da "sujeira", do espaço ocupado. Algo desconexo, pois trazer beleza, ar puro, sombra, clima ameno e até mesmo um equilíbrio hidrológico é sem dúvida muito maior que isso, um bem coletivo. Não tenho dúvidas. Minha Sibi saiu do viveiro municipal pouco estruturado e foi viver no meio urbano, pensei que seria respeitada tamanha é sua importância, tamanha é a mensagem contida no seu ser, mas ao contrário disso foi assassinada, envenenada na calada da noite. Tudo por causa de logotipos bregas que poluem nossa visão, de preguiça de varrer uma calçada? Ninguém chorou ou deu importância, mas isso é rotineiro em nossas cidades, pelo jeito vale mais o que não tem vida. Não respeitamos nossa própria espécie, imagina esses seres imóveis e tão "inconvenientes".
Não preciso dizer que elogiaram o discurso durante o evento, mas sei que grande parte dos convidados, na privacidade de seus lares, confessaram achar piegas e exagerado tudo que falei. Provavelmente fui taxado de radical, mas nisso não vejo problema, pois tenho realmente raízes bem estabelecidas. O comentário do prefeito naquele dia ainda reverbera em minha mente:
- João, o mundo não pode ser correto. Isso não funciona muito bem.
Nota:
Conheçam o trabalho da ONG Sociedade Chauá, que produz mudas de espécies arbóreas ameaçadas de extinção e as reintroduz nas florestas. Acessem o link externo, quem puder ajudar faça uma doação, estará ajudando a plantar muitas árvores.
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Emaranhados: amor, destino, caos e esperança.
Short Story[INCLUINDO CONTOS VENCEDORES DE CONCURSOS, DESAFIOS e ANTOLOGIAS] Um emaranhado de contos reflexivos. Os temas amor, destino, fé, caos e esperança permeiam os contos misturados em variados gêneros como: humor, romance, suspense, terror e ficção cien...