O Velório

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Aquele ritual nunca fizera sentido algum pra mim. Certa vez lí que pesquisadores haviam descoberto cemitérios estimados em 60.000 a.C e que a necessidade de esconder os restos mortais embaixo da terra, ou sob pedras, nada mais era do que evitar que os corpos em putrefação atraíssem animais selvagens. Era um bom motivo.

Mas deixa eu continuar então: Segui muda e à uma distância apropriada aquele grupo melancólico que acompanhava o caixão pelos corredores. Subimos três longas rampas à passos extremamente lentos. Eu, sempre aflita e inadequada, comecei a calcular mentalmente, à partir das datas de nascimento e morte gravadas nas lápides, a idade de cada um que agora "descansava" alí.

O ambiente era demasiadamente pesado. Era como caminhar presa à correntes ou embaixo d'água ou num planeta cuja gravidade é três vezes maior a que estamos acostumados. Um cheiro de flor maldita impregnava o lugar. Cheiro estranhamente cruel. Nada foi dito durante todo o percurso até o corredor 4C, onde o corpo fora enfiado em um buraco cortado na parede com uma força e um desrespeito absurdo. Cemitério vertical é o nome, não é? Acho o cúmulo. Me entenda, sou a favor da praticidade, mas empilhar corpos em caixas de madeira como quem organiza caixas de sapato no estoque de uma loja é no mínimo macabro. Corredores e andares e gavetas lacradas e enumeradas como cofres de um banco, fichários de uma delegacia onde as evidências de um crime são armazenadas. Grande biblioteca de livros inacabados.

Cimento foi colocado para vedar o buraco. O mau cheiro atraía predadores, mas isso há milhares de anos atrás. Não havia predadores, mas se houvesse certamente seriam atraídos pelo mau cheiro de flor fétida que entenebrecia os corredores. Me desculpe por descrever esses detalhes nefastos. Sou sensível à odores. Nunca mais esquecerei aquele cheiro e ele me lembrará de ontem e do que me aconteceu. Veja bem, assimilo sons e cheiros e cores à lembranças e às vezes assimilo um sentido ao outro. Essa sinestesia compensa meu lado apático e me enche de nostalgia. Não sinto muito, mas o que eu sinto transborda e dá cor à minha vida.
Me dá um nó na garganta de me imaginar em uma daquelas gavetas claustrofóbicas e de fazer parte de uma cerimônia que não aceito. Quando morrer quero ser incinerada em minúsculas partículas inorgânicas e levada pelo vento impetuoso que apenas pega na mão e leva.

Quem era o morto, perguntaste? De fato era alguém muito querido para mim. Prefiro não dar nomes. Posso inventar um se quiseres, sou boa em nomear coisas, coisificar. Mas nessa história o defunto é um mero ornamento. Estou coisificando ele agora. A visita àquele lugar foi o estopim que me fez revisitar as areias do passado e questionar toda minha bruta existência. Bruta como um pedaço de rocha que esconde com resiliência o metal precioso em seu interior. Me lapidei, e o que encontrei me encheu de pavor.

Tudo começou quando cheguei do velório...

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⏰ Última atualização: Dec 19, 2016 ⏰

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