PASTA 2

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     Ensinaram-nos a diferença entre um menino e uma menina. Não fiquei nem um pouco interessada, até então que notei que eu me referia como menina inconscientemente. Interessada. Tentaria usar verbos sem colocar "a" no final quando remeter a mim. Detestei ter que existir uma diferença. Então... Não tive nenhum interesse. Perfeito.

     - Frère Jacques, Frère Jacques, Dormez-vous? Dormez-vous? Sonnez les matines! Sonnez les matines! Ding, ding, dong! Ding, ding, dong! – repeti esse verso duas vezes assim que aprendi a falar. Minha voz não era alta como a do Homem-Laranja, e sim sussurrada, mas limpa. Chamaram esse verso de "música". O ritmo de "melodia", e as palavras de "composição". Gostei de música. - Frère Jacques, Frère Jacques, Dormez-vous? Dormez-vous? Sonnez les matines! Sonnez les matines! Ding, ding, dong! Ding, ding, dong! – repeti outras duas vezes.

     Disseram também que era Francês. Uma língua muito bonita. Língua era o que tinha dentro da nossa boca, e um sinônimo de idioma. Mas sabia que não falava Francês. Minha maneira de falar era diferente do jeito da música. Ainda que eu me admirasse pelo Francês logo de cara, apenas pensava em Francês.

*

      O ombro de alguém estava encostando-se ao meu, e começou a ficar desconfortável. Observei o olhar de cada um sem mover minha cabeça. Pareciam assustados, entretanto sob controle. Foram se separando gradativamente, cada um entrando em um local. Puseram-me em uma sala sozinha, com dois conectores em minhas têmporas.

     - Fale. – ordenaram, e eu procurei alguma pessoa ao redor. Aparentemente eu estava completamente sozinha. Pigarreei, percebendo minhas veias no outro braço, o que não tinha as barras negras. Elas saltavam, e amassei-as com o meu dedo indicador esquerdo. – Fale. – salientou.

     - Olá – senti um desespero surgir dentro do meu peito, encharcar meus pulmões e pressionar minha espinha. A aflição subiu até minha garganta que se fechou completamente. Tentei respirar nos próximos dez segundos sem sucesso algum, e acabei joelhada, até que o ar pôde passar novamente – Olá. – falei mais uma vez, esperanto que surtisse o mesmo efeito em meu organismo. Fiquei feliz que nada aconteceu.

     - Arquivo F113 ativado – silêncio. Eu era F113? – Você tem dez minutos para sair da sala. – perdi um minuto me situando. A sala tinha cheiro de erva cidreira, e por algum motivo eu sabia o cheiro de erva cidreira. Só havia eu no cômodo descolorido. A porta não tinha fechadura.

     Procurei por algo desesperadamente, algum cartão, alguma passagem ou palavra-mágica. Tentei até cantar a música que tinha aprendido, mas não funcionou. Então eu me sentei no chão, ponderando sobre alguma saída. Eu não sabia por que estava tão desesperada para sair da sala, só esperava que algo terrível fosse acontecer se eu não o fizesse.

     Comecei a brincar com os fios dos conectores nas minhas têmporas, depois os segui, como um caminho elétrico. No fim, bati minha cabeça na parede, mas me preocupei em varrer os olhos por todos os lados e encontrar uma tomada, entretanto, falhei. Sem tomada. Os fios estavam conectados diretamente na parede, como se fossem o que os dava energia. E eu era o computador. Se o cômodo era a fonte de energia, só bastava eu desconectar do computador para desligar.

     Cogitei cortar os fios com os dentes, mas eu levaria um choque tão grande que desmaiaria. Não vi a forma mais simples até que restava um minuto. Pus as mãos em cada conector em minhas têmporas, e puxei-os lentamente. Gemi enquanto arrancava eles, mas, estavam dentro da minha cabeça por causa de agulhas. Assim que ambos estavam no chão, a sala sumiu, e eu estava de frente para uma mulher tão magra que eu podia ver cada osso no seu rosto. As maçãs da face em um ângulo agudo saltadas para frente, sem bochechas, côncavo fundo, testa grande, queixo fino e nariz encurvado. Seus lábios murcharam junto com o resto de sua cara, e parecia resto de pele morta e ressecada preenchida com batom escuro.

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