O Começo

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– Você anda me vigiando? – Perguntei, sentindo a raiva e o medo subirem rapidamente para minha cabeça. Arremessei o resto dos chocolates no chão.

Ele não me respondeu.

– Me escute aqui, seu doente: vá embora daqui! E se eu vir você mais alguma vez perto de mim, não hesitarei em chamar a polícia!

Ele se levantou, devagar, limpando a poeira de seu terno branco. Sua boca não se movimentou até que estivesse completamente de pé.

– Chame... – Se virou pra mim e começou a andar para a minha esquerda. – Mas depois, não ligue se for chamado de maluco. – Quando ele atravessou a área que meu olho direito podia ver, desapareceu completamente.

E foi aí que pensei ter ficado louco.

O que aconteceu depois dali, eu não chego nem perto de me lembrar. Devo ter surtado, tido um ataque bem ali, no meio da rua. Somente acordei horas depois, no hospital. Meus braços estavam amarrados fortemente no meu leito, e uma enfermeira mexia em alguma coisa do outro lado do quarto. Não tem ideia do quanto aquilo foi assustador no momento.

– Hei! – Gritei pra ela, em pânico.

Com o susto, ela deu um pulo para trás e levou rapidamente a mão ao peito. Se virou para mim, com o rosto assustado como se eu tivesse destruído meia cidade.

– O que aconteceu? – Tentei fazer minha cara mais tranquila que eu podia, mas aquilo deve ter sido mais um misto horrível de pânico e confusão do que qualquer outra coisa. Felizmente, funcionou. Ela se virou para mim como se eu fosse um paciente normal.

– Você teve uma crise de ansiedade no meio da rua, senhor. – A voz dela era meiga, e tentava parecer o mais doce possível para me acalmar. – Se posso dizer, a pior crise que já vi, foi difícil te fazer acalmar.

Ela saiu pela porta da sala sem dizer mais nenhuma palavra e sem esperar que eu respondesse algo. Talvez tivesse ido avisar ao médico que havia me atendido que eu estava acordado.

– Olha só, vejam quem acordou. – Uma voz quebrou o silêncio que havia se instalado rapidamente. Eu estava distraído olhando para o nada e tentando reorganizar minha mente na esperança de lembrar o que havia acontecido até aquele momento. Por isso, não vi quem era num primeiro instante. – Como está se sentindo agora? Mais calmo?

– Sim. – Respondi, virando devagar o rosto na direção dele. – Apenas estou um pouco confuso e... Meu Deus do céu! – Gritei. Ao ver o rosto do médico à minha direita, ele era exatamente aquele homem que havia conversado comigo no banco da praça.

Senti minha respiração ficar pesada e rápida, como se o ar começasse lentamente a desaparecer na frente de mim. Senti meus braços começarem a se debater nas atas que me amarravam ao meu leito. Senti meu coração bater tão forte contra minha caixa torácica que parecia estar prestes a quebrar todos os ossos e saltar pra fora.

E então ele se movimentou um pouco para frente e tocou meu pulso, dirigindo a mim um olhar tão calmo e poderoso que parecia ter o poder de acalmar tempestades e parar o sol caso desejasse. O olhar de quem tem tudo no mundo sob seu controle.

E eu me acalmei.

Apesar de enxergá-lo apenas com meu olho direito e parecer que não havia ninguém no mundo que estava se importando com aquilo, eu me acalmei. Minha respiração voltou ao normal, meu coração não queria mais sair correndo e meus braços relaxaram.

Endireitei-me na cama em que estava e olhei em volta, tudo parecia calmo, sereno. Como se não houvesse um único humano no mundo. Eu praticamente enxergava tudo, via tudo. O mundo também era meu naquele momento.

Eu virei para ele, o observei por dois segundos. Até o ar em volta dele parecia obedecê-lo quando rodopiava ao seu redor, quase como um gato afagando seu dono.

– Quem é você? – Perguntei. Minha voz saiu diferente do que eu esperava. Calma como se fizesse parte do mundo e o mundo dela. Eu estava mais em paz do que estive em toda minha vida.

A boca dele imitou um sorriso. Um sorriso que curaria qualquer doença.

– Lightning, Eu Sou...

Em situações normais, eu esperaria ele completar a frase, mas naquele momento não precisou. Eu soube o que ele quis dizer e quem ele era.

– Como... – Minha voz sumiu um instante depois, e senti meus olhos marejaram levemente.

Ele levantou um dedo, que minou o resto de tentativa que eu tinha para falar ainda.

– Não temos muito tempo para conversar, Lightning. – Tombou a cabeça levemente para o lado e para frente quando falou. – Na verdade, temos muito pouco tempo. – Acenou com a cabeça para meu olho direito. – Você fez muita cena por causa desse olho, mesmo que tenha sido sem querer.

Ele se levantou.

– Vim aqui para te avisar que as coisas se tornarão diferentes a partir de agora, e espero que você se prepare o melhor que puder. Voltarei em breve. – Completou e saiu pela porta sem me dar tempo de falar qualquer coisa.

O ar voltou ao aspecto normal assim que ele saiu pela porta, o vento e todas as outras coisas sumiram de minha visão. O mundo não parecia se somar como se somava há um minuto atrás. O tempo pareceu voltar a correr.

– E aí, como está? – Outro médico cruzou a porta dois segundos depois.

– Estou bem. – Eu não estava confuso, aquilo não era nada menos que o esperado. – Um pouco zonzo. – Menti. – Mas estou bem.

– Certo. Só precisa ficar aqui mais um pouco para fazer alguns exames de rotina e já já pode ir embora, ok? – Disse ele, sorrindo.

Fiz que sim, mostrando o meu melhor sorriso.

Algumas horas depois, fui pra casa. A certeza e a segurança de algumas horas atrás graças à visita daquele homem aos poucos foram sumindo, sendo substituídas por uma paranoia absurda enquanto eu caminhava.

As pessoas pareciam me olhar. Todas. Todas me olhavam como se eu fosse um monstro, como se tivesse algo na minha cara ou como se me odiassem. Isso tornou o caminho de volta imensamente incômodo.

Tranquei minha casa da melhor maneira que pude e depois fui direto para o banho. Devo ter ficado uma hora lá, não me lembro exatamente, mas foi bastante tempo. Eu já havia me acostumado com a tonalidade amarela de tudo do lado direito e se eu não me esforçasse, sequer repararia em algo.

Mas essa ideia era mais perturbadora do que ver o amarelo o tempo todo.

O banho foi relaxante, voltei pro quarto e comecei a reparar em coisas que não iria reparar nunca antes. As coisas pareciam estar fora do lugar, no lugar errado. Mas tudo estava como antes, da mesma forma como antes, inalteradas, comuns e silenciosas.

E agora o mundo estava completamente equivocado. As coisas estavam fora de lugar, desarrumadas, quase quebradas. Então arrumei tudo, até toda aquela aflição ir embora. Até o mundo estar em ordem.

Mas aí, eu não estava em ordem. Eu estava desarrumado, com o cabelo de um mendigo, roupas amarrotadas e o rosto de um bêbado que saiu duma briga recentemente. Isso tudo mesmo após o banho.

Eu estava totalmente em desarmonia com o mundo que agora estava em ordem.

Foda-se.

Caí de cara na cama e apaguei imediatamente, realmente como um bêbado.  

Chronesthesia - O ClichêOnde histórias criam vida. Descubra agora