Riscos Induzidos

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- A natureza é rabiscos - estava dizendo Ghatta, um dos meus amigos imaginários. Era o maior de todos, e o mais fino, possuía dedos longos e andava curvado. Ele não tinha rosto - sim, rabiscos de um desenhista diferente.

Eu estava indo para a escola, sempre arrodeado por eles. Aonde quer que eu fosse, eles também me acompanhavam. Era quase uma maldição antiga, ou alguma magia negra... não importa, se um dia pensaram que me jogando aos cães me faria perecer, é porque não imaginava que eu era um deles. Se permitir, também dilacero com meus dentes uma vítima indefesa.

Pelo meu pescoço se contorcia o mais peçonhento deles, todos eram cinzas e pareciam feitos de fumaça.

Est disse:

- E quem lhe garante que não foram outros desenhistas juntos? Talvez aqui e ali aja uma pincelada intrusa de algum impostor... - ele era o mais teimoso dos inúmeros. Na verdade eles sempre mudavam. Alguns eu nunca mais via, outros eu via novamente quando ressuscitava uma emoção... mas haviam três que sempre me acompanhavam. Eles eram Ghatta, Est e Locuta.

Aquele que parecia um gato interveio.

- Esses rabiscos podem ser oriundos do acaso, quem sabe, sem significado. O que você me diz, Yago?

"Maldito seja", pensou Yago, indo discretamente para a escola, "Até essas malditas criaturas debatem acerca disso?"

- Não me faça perguntas, - sussurrou Yago - diferente de vocês, as pessoas me vêem e me escutam.

-Ok, agora sentem-se, que vai começar a prova final - disse o professor de História, já colocando as provas em seus respectivos lugares.

"Às vezes, essas criaturas só aparecem para atrapalhar", pensou Yago, enquanto Est serpenteava pela sua carteira, sobre sua prova.

- Cruzadas, ainda me recordo da decadência do feudalismo... - dizia Est, com sua voz de tom melancólico e grave, ele era sempre assim.

"Você não estava lá", pensou o humano, "eu criei você", de repente ele olha a tudo ao seu redor. Para as luzes, os reflexos da realidade, apura seus ouvidos e escuta o espectro acústico, tentou aguçar seu tato, sensores de seu corpo. "Este mundo, é minha mente que cria".

- Ei, estranho. - sussurrou alguém na carteira atrás de Yago - Me passa as respostas aí.

Yago continuou sua prova indiferente.

- Ei! Vai me deixar no vácuo? - continuou. Quando viu que não obteve respostas, disse - Toma.

Ele jogou um papel sobre a cadeira dele. Sem paciência, Yago respondeu e o entregou.

O cara, ao ler, tem seu semblante transformado pela raiva.

- Eu não vou me esquecer disso. - disse, e continou sozinho.

- Você estava teimando de mim quando disse que a Inquisição matou menos gente que a Revolução Francesa. - Dizia Locuta, lhe encarando apenas com aquela face negra sem feições, sua voz oscilava, declinava, as vezes lamentava querendo gritar, ele parecia maior conforme repreendia - Você não acreditou em mim.

Mas Yago, com suas mãos na sua jaqueta, e com a cabeça sob o capuz, continuou em seu percurso para casa.

- Já disse que deixei de trapacear com suas respostas há meses, - falava bem baixinho, temendo ser escutado - quero confiar em mim mesmo.

Agora Ghatta ria, e com sua mão grande ele tentou cobrir minha cabeça por completo. Se ele tentou obstruir minha visão, talvez tenha esquecido que fumaça é meio transparente.

- Se você confiar apenas em si mesmo, será como um cego que recusa um cão guia.

"É o que tenho feito a vida toda", pensou. Agora estava numa rua meio estreita, e escutou passos saindo de algum lugar a sua frente. Parece que estavam o esperando.

De repente, saiu aquele garoto, ele usava uma camisa para cobrir o rosto, mas sua voz era inconfundível.

- Tá lembrado de mim, vacilão? - disse ele, e atrás dele apareceram mais garotos com sacos cheio de ovos.

"Oh, céus", pensou, e quando pensou em olhar para trás, viu outras pessoas o cercando. Parecia que sua turma inteira estava lá.

De repente, sentiu o primeiro ovo se acertar a cabeça, e outros consecutivamente acertarem seu peito. Tentava se defender com os braços, mas era em vão. Outras pessoas estranhamente faziam isso. Eles gritavam, riam enquanto fazia isso... Yago estava se inflamando se raiva, se inflamando cada vez mais. Estava respirando rápido e pesadamente, tudo o que queria naquele momento era um rifle carregado...

O ambiente todo se silenciou. Todos continuavam gritando, claro, rindo, humilhando-o... mas somente suas pesadas respirações era escutadas. Nesse momento, ele viu um fantasma que viu raramente, era um dos únicos que não eram cinza. Yago serrou o punho, a razão o abandonou...

Ele olhou ao redor, só via ele. Ele queria gritar tudo aquilo que sentia, seu sangue estava fervendo, nada podia para-lo. Quando se deu conta, as pessoas ao redor estavam com feições de espanto, mas ele não se importava, queria alcançar a todo custo aquele garoto que começou tudo. Na sua mão estava apertando uma caneta, era só chegar lá, ninguém podia pará-lo...

Houve gritos. Aquele garoto estava grunhindo de dor, gritando alto. Yago havia saltado sobre ele, e espetado aquela caneta em seu olho. Aquele garoto estava se rolando no chão. Ele não ousava tocar na caneta...

Yago estava no chão, alguém conseguiu segurar ele antes que ele ferisse mais o colega. Vendo a situação em que aquele garoto estava, ele riu alto, não conseguia se conter. Até que alguém chutou seu rosto, e começou a espanca-lo a mão fechada, até que as autoridades chegaram.

"Onde vocês estavam?", pensava Yago, deitado no sofá, após tomar banho e com curativos no rosto, "será que nem em vocês posso confiar?". Mas seus fantasmas permaneceram calados. Só um ousou falar.

- Foi você que nos abandonou...

Yago escutou passos se aproximando. Seu pai havia acabado de chegar do hospital após ter tido uma conversa com os pais daquele garoto, com a diretora da escola, e com os médicos.

- Você enlouqueceu de vez?! - gritou ele, com seus olhos vermelhos, afetado pelo álcool - Você sabe o que fez? Você furou o olho de uma pessoa com um lápis! E ainda por cima ficou rindo como... como um psicopata! - gritou ainda mais seu pai, e entrelaçou suas mãos em seu cabelo - Meu Deus, será possível que meu filho ficou louco?!

Enquanto meu pai falava, Locuta, estava atrás dele, dizendo em forma de escárnio:

- Blá blá blá blá...

Yago não resistiu, acabou desenrolando um disfarçado sorriso no rosto.

Seu pai percebeu, e o fitou, pasmado.

- Eu já agendei uma consulta sua com um psiquiatra, - falou, como se estivesse lúcido - eu sempre pensei em fazer isso, mas sempre adiava... Agora aprendi a não deixar nada pra depois.

Psicose CinzentaOnde histórias criam vida. Descubra agora