Estava chovendo. Ainda me lembro bem, estava úmido, eu estava na casa de minha avó, num depósito iluminado precariamente por uma lamparina, cujo odor de querosene impregnava o ambiente. Eu estava envolvido com lençóis diferentes, mesmo assim sentia frio, mas estava distraído demais vendo a espessa e negra fumaça que esvaia da lamparina a todo instante. Trovões soavam subitamente, onde pelas finas brechas do teto, eu as via sendo preenchidas por breves feixes luminosos a cada raio soltado. Eu ouvia goteiras, estava em meio a caixas empoeiradas, sob três panos de diferentes cores olhando fixamente a textura da lamparina; cada contorno de seu design, da sujeira, do desgaste... olhava o chão ao redor, analisando as curvas as linhas na madeira, os arranhões... eu via rostos em todos os lugares, em paredes, chãos, até em áreas superficiais de lamparinas, rostos de animais, de pessoas... olhos me encarando, olhares inseguros virados para o lado, sorrisos, rostos sérios, ou até mesmo sem feições e bocas, será que somente eu vejo essas coisas?
"Você é verdadeiramente sem noção"
"Sem noção, eu?", rebatia Yago, em pensamento.
Locuta estava enrolado em seu braço, o apertando, como forma de mostrar seu desagrado a Yago. Ele estava na entrada do cemitério, sentindo a pressão daquilo que se assemelhava a uma serpente fumegante.
O dia estava escurecendo, o caixão já havia sido posto no buraco. Yago não queria que aquele momento se repetisse novamente. Via pessoas chorando, outras, com suas feições pálidas, reflexivas, e alguns, olhando para o relógio. A pior parte de um enterro não é ver o corpo de alguém que você amou um dia a sua frente sabendo que você nunca mais vai demonstrar seu amor a ele... a pior parte, a mais macabra e torturante , era a que estava por vir... ser obrigado a escuta o barulho de terra se chocar contra o caixão. Até aqueles mais fortes não resistiram, e se puseram a chorar. Sua mãe, ele presumia ser, estava mais próximo do lugar, onde dois homens com pás gradativamente enterravam o defunto.
As pessoas o encaravam com desprezo, outras com curiosidade, com apreensão, o encaravam...
... Yago caiu com seu ombro sobre vasos que estavam no chão. A princípio, estava atordoado, e, rapidamente, com seu coração a mil, olha para frente, escutando gritos de espanto e de ameaças. O pai daquele garoto estava fazendo esforço para se livrar daqueles que o seguravam... ele queria espanca-lo, quem sabe, mata-lo...
- Como ousa?! Como ousa pisar aqui?!
Vendo-o daquele jeito, Yago via perfeitamente seus fantasmas ao redor dele, mas ralos, se compondo ainda. Ver aquele homem em fúria, estranhamente, lhe lembrou o momento em que ele viu sua mãe inconsciente, e igualmente como aquele homem, ficou fora de si e chutou a mesa de onde estavam boa parte das drogas, siringas e cinzas.
Yago se afastou com as mãos para trás. Ainda estava confuso, tentando se orientar. Ao seu redor, todo mundo, exatamente todo mundo o olhava com desprezo, com exceção de algumas crianças que o olhavam apenas curiosamente atônitas.
- Calma, eu te ajudo. - disse alguém, colocando a mão em meu ombro, e depois me ajudando a me levantar.
Quando olhei para frente, pude ver o pai daquele garoto abraçando forte aquela mulher cujo julguei ser a mãe, e do lado, estava uma garota cadeirante que estranhamente chamou muito minha atenção. Eu estava na intensão de ir, mas quando me dei conta, não parava de fita-la.
Ela era tão alva quanto a aurora, e não era por isso que algo me diz que ela vivia confinada. Tinha cabelos longos, macios e encaracolados, com olhares que lembrava muito gravuras romanas antigas... mas, eu não via ela com cores tão vivas... ela era meio cinza, com um semblante que não parece ser reação àquele momento, mas um semblante comum. Aquela multidão não significava nada para ela, mas claro, ela não estava sozinha... tinha a solidão como companhia, um fantasma que temos em comum.
Agora eu estava em meu habitat natural, no meu quarto, fazendo o que naturalmente faço. Toda vez mexo meu braço, sinto meu ombro doer. Como se já não fosse suficiente as dores que sinto em minhas costelas, e as ardências em arranhões no meu rosto. Pensava em desenha-lo morto, mas tinha receio de fazer isso, por imaginar que ele realmente seja morto como de uma forma que ainda desconheço, aconteceu com um de meus desenhos... porém, aquele desenho eu fiz inconsciente, talvez eu consciente não tenha essa habilidade. Mesmo assim, é uma possibilidade, a razão pelo qual o estou desenhando sendo enforcado agora, para não haver suspeitas de que haja assassinato, e poupar trabalho a polícia... por outro lado, isso aumentaria o ódio das pessoas por mim, uma vez que já me odeiam por uma morte, imagine por outra que foi "desencadeava" em virtude dessa?
"Essa não é a razão de você querer vê-lo morto", disse Est, "você sabe bem disso."
"Claro que sim", rebati, "não quero gerar mais suspeitas sobre mim."
Locuta, ao ouvir isso, riu intermitentemente.
Est disse:
"Você não odeia ele. Você compreende ele."
"Do que você está falando?", rebati, "eu o compreendo por me querer morto?"
"Não", disse, em resposta, "Ele sabe que não foi você, mesmo que o trauma de uma perda o obrigue a descarregar seu desagrado em um 'culpado', seja ele quem for. Que no caso é você"
Estranhamente, Yago viu cinzas voando, seringas batendo em paredes, tragos caindo por terra...
"E você sabe perfeitamente do que estou falando..."
Meu celular estava tocando, estava na hora de participar de outra seção com meu psicólogo.
Eu não queria ir. Estava desestimulado demais. Em minha cadeira, rodeado por vários desenhos que fiz nas paredes quando criança, me sentia acolhido. Aquele era o lugar onde eu me acalmava, me sentia pleno, onde sabia que poderia ser eu.
"Roma".
Um antigo fantasma, bem sei. Um dos primeiro que conheci. Ele estava em minha frente, fraco, incrivelmente transparente, misterioso em sua forma, mesmo assim, sentia que ele era sozinho, infeliz. Ele emitia ruídos desconexos, mas era incompreendido. Eu nunca soube o que ele exatamente era, e nem a nada fui capaz de associa-lo. Eu sabia que era aquela garota...
Eu me sentia em extrema harmonia com ele aqui. Era incrível. Uma sensação que só se pode sentir quando se estar completamente só, sem amigos, alguém para se importar. Era libertador, triste, mas me sentia perfeitamente cogniscível, subtendido. Eu precisava somente sentir, e compreendia. Ninguém pode sentir o que sinto. Ninguém ouve as vozes que escuto, vê as coisas que vejo, sente os toques que sinto. É somente eu que os vivo, somente eu sei. Eu não preciso de ninguém, somente de meus companheiros.
Não havia percebido, mas fiz um desenho estranho. Riscos circulares crescentes, algo em espiral, como um redemoinho visto de cima. E eu sei, somente eu posso ler esse desenho.
Quando sai, vi minha irmã chegando da escola, e indo diretamente para a cozinha, com uma pressa suspeita. Eu a chamei, mas ela me ignorou. Eu sabia que ela estava chorando.
Eu estava batendo na porta, querendo falar com ela.
- Sai daqui! - gritava ela – Eu não quero vê-lo nunca mais. Eu tenho medo de você!
Aquilo me magoou profundamente. Suponho que minha fama tenha chegado a seus colegas, e que por minha causa, ela tenha sido rejeitada ou humilhada.
Perdi a confiança de minha irmã, e há muito a admiração de meu pai. Eu não me importava tanto assim em saber que todos me odiavam, mas minha irmã me odiar me desconstruiu profundamente. Minha vida é ótima, disso sei. Eu ainda estava pasmado, encostado na porta, escutando silenciosos soluços.
- Você não precisa ter medo de mim. - dizia, com os lábios trêmulos - Você é minha irmã.
"Até eu tenho medo de você", disse Est.
Por um momento, eu perdi a cabeça, e gritei, "Maldito! Como ousa?!". Trêmulo, e com a razão recuperada, me dei conta da loucura que fiz. Maldito seja! Minha vida é um lixo!
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Psicose Cinzenta
HorrorNarra a história de um jovem anti-social que mora somente com sua irmãzinha e seu pai alcoólatra, onde este, passa a maior parte de seu tempo desenhando sob a companhia de seus fantasmas. Mal sabia ele que seu passatempo, seu passado e seus fiéis co...