Prólogo

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PRÓLOGO

A sensação de acordar no meio de um campo era estranha, a grama irritava minhas costas nuas, o céu já estava claro e abrir os olhos era algo incômodo e atordoante. Meu corpo estava sujo de terra e minha cabeça doía muito. "Parece que a noite rendeu" era a voz do diretor, eu e meus irmãos viramos a noite bebendo e jogando futebol, geralmente é proibido o consumo de bebidas, mas como era a nossa despedida do orfanato nos deram esse privilégio. As memórias vinham aos poucos, tentei me sentar meio tonto. O diretor Thomas me disse "vamos rapaz, seja o primeiro" e me puxou pelos braços, ele era um senhor barrigudo mas que tinha bastante força, fui arrancado do chão e posto de pé, assim que consegui me equilibrar gritei "acabou a festa galera", eu exercia um certo tipo de influência sobre os demais e Thomas sabia que se eu quisesse ficar deitado ali admirando as nuvens o dia inteiro os outros me seguiriam "vamos para o dormitório, as crianças pequenas já vão acordar" eu tinha um senso de responsabilidade muito forte, não queria que fossemos um mal exemplo para os menores. Foi engraçado assistir aqueles marmanjos tentando se levantar poiando-se uns nos outros, eu ia sentir saudades daquele lugar, mas aos 20 anos eu já não podia mais residir ali, nem eu e nem esses desastrados que já tinham a mesma idade.

O clima do dia foi de adeus, fizemos nossas malas, nos despedimos de todos. Mas eu não tinha a intenção de ficar longe por muito tempo, pois assim como os outros que haviam saído antes de nós, eu voltaria para fazer visitas frequentes. Os planos eram simples, alguns já tinham emprego na cidade, outros estavam entrando na faculdade, iriamos alugar apartamentos para continuarmos morando juntos por enquanto, éramos sete, e sabíamos nos cuidar. Nenhum tinha família ou lugar para onde ir, éramos nós contra o mundo, e eu já tinha até achado uma moradia perto e que não era tão espaçosa, mas nos acolheria bem.

Naquela tarde antes de partirmos, Thomas me chamou em seu escritório:

-Filho, a partir de hoje não posso mais proteger você do mundo como sempre fiz, desde que chegou aqui notei algo diferente em você, não era um garoto comum. Sempre foi o mais esperto e por alguma razão os outros te seguiam.

- Isso é verdade e as vezes eu acabava metendo todos em encrenca, como daquela vez que saímos quando os portões estavam abertos para jogar no campinho da outra rua – era uma lembrança difícil para alguém como eu, mas que já tinha sido superada, na época passei um bom tempo me sentindo culpado - Lucas quebrou o braço.

-Naquele dia você veio até mim chorando, assumiu a responsabilidade por todos e disse que nunca mais faria isso. Outra criança teria medo.

-Eu devia ter uns dez anos.

-Você tem o dom de cuidar das pessoas, e isso vai te ajudar a salvar muitas vidas. Eu tenho uma oferta de emprego para você.

- Obrigado Thomas, eu nem sei o que dizer.

-Mas para isso, você vai ter que abandonar todos os outros. Você vai ter que ir só e ficar sem fazer contato com ninguém por um tempo.

-Mas nós somos uma família, não pode me pedir isso. – Sorri achando que era alguma brincadeira ou algum teste para testar minha lealdade.

-Filho, você confia em mim? - Sua expressão era séria, ele parecia estar me pedindo algo realmente importante

-Confio. -Thomas era o mais próximo que eu tive de um pai, eu confiaria minha vida a ele.

-O destino te escolheu, você sempre ouviu o que eu disse, e agora estou dizendo para você ir.

-Mas é diferente. O que eu vou fazer sozinho? Como vou contar isso para os outros? - Ele me entregou um papel com um endereço.

-A escolha é sua, se decidir aceitar, procure pelo Martin

-Obrigado senhor.

-Tchau filho, Que o Criador ilumine o seu caminho, já tenho orgulho do homem que se tornou- disse ele me dando um abraço.

Lá fora, meus irmãos esperavam por mim. Todos estavam dentro da van que alugamos para nos levar a nosso novo lar. Por mais de alguns segundos antes de entrar, olhei para o papel em minha mão, era fim de tarde. Levantei o olhar para encara-los e o aperto no meu coração foi crescendo, era hora de deixá-los ir e seguir um rumo diferente, algo dentro de mim sabia que eu devia ir até aquele endereço e fazer o que Thomas havia falado "Você tem o dom de cuidar das pessoas, e isso vai te ajudar a salvar muitas vidas" aquelas palavras estavam vivas dentro de mim. Eu sabia que poderia me arrepender disso, mas eu já havia tomado a decisão, dei um passo para trás e depois outros, eles me olhavam pelas janelas da van, acenei um adeus e com lágrimas nos olhos virei para a direção oposta. Esperei algum deles descer e vir atrás de mim mas ouvi a porta bater e o veículo partir, parece que todos entendiam o que aquele gesto significava. "Adeus irmãos, espero revê-los um dia".

A cidade do abismoWhere stories live. Discover now