Um

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Foi no meio daquele conserto musical, sentada entre meu esposo de cabelos encaracolados e uma senhora de peruca loira que parecia não querer parar de beber, no auge da inspiração do pianista que se apresentava e não parava de sorrir, que me dei conta que havia esquecido de dar adeus à minha irmã antes de sair.

Estranho. Tantos pensamentos tão "mais importantes" e me lembrei disso?

Se por algum motivo me lembrei, por outro motivo mais forte não consegui esquecer nem por um segundo. Enquanto o conserto não acabava, não conseguia tirar da cabeça os olhos verdes da minha querida irmã Julia e como fui mal-educada por não me despedir.

Assim que o conserto acabou, corri em direção à casa do campo onde a deixara com meu filho Daniel - que, por sinal, eu havia me despedido com muitos beijos nas suas bochechas com sardas.

Desci do carro antes do meu esposo e corri em direção à porta da sala principal a fim de abraçar minha irmã assim que eu entrasse.

Quando entrei, me deparei com Daniel dormindo no tapete da sala agarrado ao nosso cachorro. O que seria bem normal se todas as luzes não estivessem apagadas... Daniel sempre teve medo do escuro.


***


- O que aconteceu, querido? - Eu me aproximei. Ele abriu os olhos, se sentou e olhou para todos os lados lentamente.

- O moço de azul. - Seu olhar estava vago.

- O que tem, meu amor?

- Ele foi embora.

- Quem é esse "moço de azul"? - Ele deu de ombros. - Onde está sua tia Julia?

- Eu não sei, mamãe. - Ele olhou para mim e fez cara de medo. - Liga a luz?

- Claro, querido. - O peguei no colo e fui em direção ao interruptor.

Humberto entrou assim que acendi as luzes. Ele colocou seu casaco marrom no mancebo e dirigiu-se a nós com uma expressão confusa.

- Por que está assim, Aila?

- Encontrei Daniel dormindo no chão com as luzes todas apagadas e ele não sabe onde está Julia.

- Ele deve ter vindo para cá dormindo como faz às vezes... Vá lá em cima chamá-la. Vou falar com Amélia.

- Está bem.

Deixei Daniel com meu esposo e subi as escadas. Sentia algo estranho no peito, uma dor misturada com inquietação.

O lugar estava silencioso, eu conseguia ouvir os passos do andar de baixo e também cochichos vindos de lá. Provavelmente Humberto estava falando com Amélia.

Quando cheguei perto à porta de Julia, ela estava fechada. Eu a abri lentamente e entrei.

- Julia?

Ela não estava lá. Senti um cheiro forte de cloro e o chão estava úmido.

Fui ao banheiro, mas também não estava lá.

- Humberto! - Gritei. - Vem aqui! Ela não está no quarto!

Humberto subiu as escadas apressadamente e chegou ao quarto. Eu já estava ofegante, sentia um mal pressentimento.

- Ela, ela não tá aqui.

- Calma, Aila. Você já ligou para o celular dela? - Ele disse em um tom tão calmo que eu me senti uma louca.

- Não. Liga pra mim. - Ele pegou o celular e discou o número. Quando começou a chamar escutamos o som vir lá de baixo, então descemos.

- Senhora, o celular estava na mesa de centro. - Amélia disse me entregando o celular de Julia.

- Viu, Humberto? Ela não tá em casa e deixou o celular, isso não é normal!

- Calma! Ela pode ter saído com alguma amiga. Você sabe como ela é. Não fique preocupada atoa. - Ele olhou para Daniel que estava no colo de Amélia. - Você vai assustá-lo desse jeito. - Disse baixinho. - Amélia, leve-o para o quarto por favor.

- Sim, senhor.

- Você não entende, Beto. Eu sinto que aconteceu algo. - Eu disse enquanto Amélia saía.

- Vamos chamar o Carlos e perguntar se ela pediu para levá-la a algum lugar. - Carlos é nosso motorista. Ele fica encarregado de levar Julia onde queira.

- Ele está de folga hoje, esqueceu? - Eu me abracei balançando a cabeça para os lados. - Ela não sai sem ele... Aconteceu algo, estou dizendo.

- Vamos ligar para as amigas de Julia e procurar por toda a casa e pelo jardim. Não se preocupe se não tem certeza que algo ruim aconteceu. - As frases quase que inexpressivas de Humberto às vezes me davam calafrios.

- Está bem. - Disse apesar de ter certeza que aquilo não daria em nada.

Ligamos para todos os contatos de Julia do celular e ninguém havia falado com ela. Algumas amigas se propuseram a ajudar, então pedimos que perguntassem a mais pessoas que ela conhecia se ela tinha feito contato.

Eu subi ao seu quarto novamente, enquanto Beto procurava pela casa e pelo jardim. Liguei seu computador e entrei em suas redes sociais. Ela não tinha publicado nada desde a manhã, nem mandado mensagens a ninguém também.

Tive a ideia de olhar suas coisas, então abri todas as suas gavetas e portas do guarda-roupa. Tudo estava intacto. As roupas nos mesmos lugares, organizadas e subdividas pelas cores como ela gostava de fazer. Fechei a porta, apoiei a testa nela e senti o mesmo cheiro de antes: cloro.

- Amélia! - Ela apareceu rapidamente. Estava no quarto de Daniel que era ao lado do de Julia.

- Sim, senhora.

- Você limpou alguma coisa aqui hoje à noite?

- Não, senhora.

- Antônia limpou?

- Ela não está em casa, senhora. Está na casa da mãe. - A mãe de Antônia estava doente e eu dei dois dias a mais de folga à ela. Eu tinha esquecido disso.

- Onde você passou a noite?

- Em meu quarto, dormindo. - Ela esperou alguma pergunta minha, mas eu não fiz. Então, continuou a falar. - Acordei quando Humberto, digo, senhor Humberto foi ao meu quarto.

- Vem aqui. - Ela se aproximou. - Cheire o guarda-roupa.

- Cloro, senhora.

- Exato. Se nem você nem Antônia limpou aqui, quem foi?

- Será que foi a senhorita Julia?

- Você ouviu alguma coisa estranha hoje?

- Não, senhora. Como eu disse, eu estava dormindo.

- Entendi. Pode voltar ao quarto de Daniel. Mas fique acordada, não quero que ele saia do quarto e nos veja nervosos.

- Sim, senhora. - Ela saiu.

Sempre confiei cegamente em Amélia. Ela me ajuda a cuidar de Daniel desde que ele nasceu. Ele tem cinco anos e em todo esse tempo ela nunca me deu nenhum tipo de problema. Ela é como nosso braço direito.

Beto chegou depois de quase meia hora e só balançou a cabeça para os lados confirmando que não tinha encontrado nada. Eu me sentei na cama, apoiei meus cotovelos nos joelhos e olhei para o chão, foi aí que notei que o tapete beje não estava mais lá.

Me abaixei, olhei o chão de perto. O cheiro de cloro era mais forte naquela parte onde ficava o tapete, no lado esquerdo da cama. Levantei o edredom que cobria a cama e pedi o celular de Beto para iluminar lá.

Minhas mãos perderam a força e o celular caiu no chão. Humberto se abaixou e viu a pulseira de Julia próximo ao pé da cama, quase imperceptível. Tinha sangue nela.

Ele me abraçou com um dos braços e com o outro discou para a polícia.



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