Quebra-cabeça

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Tínhamos uma lista imensa de afazeres, algumas boas e outras uma grande surpresa desagradável, e, sobre essas surpresas, um telefonema para o meu pai poderia esclarecer as coisas ou pelo menos descarregar o meu desconforto lendo sobre elas. Peguei o celular e disquei o numero de casa, esperei por alguns segundos e então ele atendeu:

- Alô, filha? Ei, como você está, anjo?

- Oi pai. Estou bem, e você? - Eu falei de um mode suspeito, mas acho que ele não percebeu...

- Estamos ótimos, filha! Sua mãe está na igreja agora, espero que o sermão não seja aquele de sempre. Você sabe como ela fica...

- É verdade, te desejo boa sorte! - Ri levemente - Mas pai, eu gostaria de saber o motivo de eu estar inscrita em uma sessão de psicoterapia ? Nós não combinamos e nem...

- EI, não fique brava. Confie em mim, você precisa disso, e a senhora Chloé é uma amiga muito antiga. Ela só irá conversar com você, nada além disso.

- Tá, tudo bem. Não deve ser tão ruim, eu só fiquei brava por ninguém ter me contado isso. É quase uma invasão, sabe?

- Eu sei que você não está bem para compartilhar o que está passando com ninguém, eu sei... - nem comigo - Mas confie em mim, não faria sentido algum você viajar para tão longe somente para passar o tempo. Acho que não iria ajudar. Faça tudo voluntariamente, não precisa ir tão longe se não quiser, certo?

- Tudo bem. Eu farei!

- Agora eu vou terminar de cozinhar e alimentar o gato, talvez o fogo esteja baixo...eu acho. Eu te amo, vou te ligar mais tarde.

- Faça isso. Também te amo, e, por favor, não deixe nada sozinho no fogo outra vez.

- Claro! - Disse rindo - Um abraço e se cuida!

Era isso, aguentar a sessão de invasão mental ou me matar, opções igualmente tentadoras. O que me animava eram as outras coisas que eu iria fazer com o meu tio e com Anna, almoçar em restaurantes chiques, ir ao cinema, conhecer edifícios fabulosos, museus, bibliotecas e caminhar no parque central. Era incrível o modo de como essas coisas me faziam esquecer o meu trágico mundo real.

Ao entardecer, meu tio visitou o quarto de hóspedes onde eu estava, para me indicar alguns filmes que iríamos ver no cinema, eram todos bem clássicos, como: O Conde de Monte Cristo (1975), A Máscara da Morte Rubra (1964), entre outros. Escolhi o segundo, pois era um dos livros — o filme é uma adaptação — que me fazia crer num ser inteligente que vive além do mundo que nós vivemos. Fato bem estranho. 

Chegamos ao cinema e sentamos no meio da sala, um garoto sentado em frente tinha o cabelo mais estranho que eu já tinha visto, tinha uma forma triangular e verde, não que importasse, mas chamou muito a minha atenção. O filme começou e as pessoas assistiam com uma atenção extraordinária. Houve uma cena no filme em que o príncipe discuti como um filósofo com uma garota crente no cristianismo, convencendo-a que Deus está morto e que se alguém governa o mundo, esse alguém não é o divino. Observei cada semblante confuso, olhares cheios de razão e outros amedrontados das pessoas naquela pequena sala. Como eu, percebi que muitas possuem dúvidas sobre o paraíso perdido, ninguém mais o viu.

Terça-feira - 14:00 - Sessão com a Dra.Chloé ( Psicóloga )

Hoje é o dia em que "conversarei" com a Dra.Chloé, eu já esperava o pior. Não aprovava nada que pudesse me fazer perder a razão ou a privacidade da minha mente. Eu sei que tudo isso é exagero, mas eu simplesmente não podia evitar. Anna me acompanhou até o consultório, um lugar pequeno mas muito aconchegante e com cores claras, trazendo uma sensação de liberdade. Quem nos atendeu foi a própria Chloé, uma moça morena e alta, com olhos castanhos e profundos como se pudessem ler cada pensamento seu sem sequer trocar uma palavra. Isso me fez se sentir à vontade com ela, sem contar a sua simpatia e inteligência, e o amor por livros clássicos. O começo da psicoterapia foi como uma conversa entre duas colegas se conhecendo melhor, nada forçado e nem constrangedor, apenas uma conversa bem comum. Pude perceber ali que a invasão nunca é real, eu entregava o que havia dentro da minha mente de forma voluntaria, e isso porque eu realmente precisava. À cada sessão, uma peça se encaixava, peças que eu nunca acharia sozinha, peças que os ventos levaram para muito longe.

O JARDIM - ONDE OS ANJOS CONVERSAMOnde histórias criam vida. Descubra agora