Parte I

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Lembro-me que no momento em que vi aqueles olhos negros como a noite tudo ao meu redor desapareceu, era como uma espécie de hipnose ou até algum tipo de magia, algo quase incontrolável e súbito, um sentimento primitivo que distorcera meu senso de certo ou errado. Aquela bela menina de cabelos longos e negros jamais poderia imaginar o futuro que à esperava, no instante em que apareceu nas escadas, descendo para um jantar que eu esperava ser igual aos outros que meu irmão fazia todos os anos, eu me vi atônito, todos os meus sentidos se voltaram para ela. E quando finalmente desceu o último degrau, virando o rosto de um lado para o outro, o cenho levemente franzido e o olhar à procura da mãe, eu já havia decidido: Perséfone seria minha.

Ela devia ter uns dezoito anos naquela época, já não era mais a menina magricela e tímida que eu lembrava, era uma mulher, seu corpo agora possuía curvas quase incomuns para sua idade e seria facilmente confundida com uma mulher mais velha se não fosse pelo seu rosto jovial e algumas espinhas que entregavam sua idade. Parecia que tudo nela havia sido esculpido com perfeição, seus lábios pequenos e rosados, a pele branca e suave e os cabelos levemente ondulados traziam a ela uma aparência serena e ao mesmo tempo misteriosa, naquela noite ela usava um vestido branco curto, algumas pulseiras e um crucifixo, que estava sempre com ela, lembro-me de cada detalhe. Não havia mais volta, eu estava perdido e meu desejo de tê-la aumentava a cada segundo. Durante a ceia não conseguira tirar os olhos dela, era véspera de Natal e eu não queria criar mais motivos para os comentários maldosos sobre mim, pelo menos não naquele momento.

Perséfone, ou Cora, como era carinhosamente chamada, por algum motivo, pela minha irmã Deméter e pelo meu irmão Zeus (cujo casamento eu jamais aprovara), era a única filha de minha irmã, e por isso era muito protegida. Deméter recusara todas as propostas de namoro que foram feitas à sua filha, o que deixava a menina muito triste por um tempo, mas não a impedia de dar suas escapadas uma vez ou outra sem que seus pais soubessem.

Durante a ceia, estávamos todos distribuídos em uma mesa enorme que foi colocada no quintal da mansão igualmente grande de meu irmão, tudo havia sido preparado com alguns dias de antecedência por Deméter, havia um toldo por cima da mesa que estava em um gramado ao lado da piscina e tudo estava decorado com flores. Eu estava sentado quase em frente à Perséfone e passei o jantar inteiro olhando-a discretamente, ela aparentemente não percebera.

A mesa estava repleta de pessoas da família, dos vários filhos de Zeus a maioria estava presente, ocupando boa parte dos lugares. Ficamos todos conversando sobre assuntos variados de família por algum tempo, até decidirmos que já estava na hora de irmos dormir, então, aos poucos, nossos familiares foram se retirando para seus quartos temporários, a mansão de meu irmão tinha espaço de sobra para todos. Ao perceber Zeus se levantando aproveitei para perguntar-lhe onde ficaria o meu quarto.

– Última porta à esquerda – Respondeu ele com um breve sorriso. – Se quiser alguma coisa é só pedir para uma das empregadas – Acrescentou.

Segui para a entrada do quintal e me dirigi para as escadas, ao vê-las me lembrei da cena de Perséfone descendo-as naquele dia mais cedo. Tentei lutar contra a sensação boa de visualizá-la em minha mente, mas era impossível, tudo o que vinha em meus pensamentos era ela.

Ao fim das escadas havia um corredor que se dirigia para os dois lados, repleto de portas, em uma das pontas ele dobrava à direita, revelando mais quartos para os hóspedes. Quando cheguei em frente ao meu, vi Perséfone na extremidade oposta do corredor, por um instante pensei em caminhar até ela, um pensamento quase irracional que chegou a mover meus pés por uma fração de segundos, mas fiquei ali, parado à porta, olhando em direção a ela até que sumisse, adentrando o que parecia ser mais um quarto.

Fiquei parado por alguns segundos, até me dar conta de que deveria entrar, ela me deixava assim, catatônico. Fui até o banheiro do quarto, lavei o rosto e me olhei no espelho, era algo que eu não fazia há algum tempo, olhei fixamente aquele rosto por alguns longos minutos, algumas rugas de expressão estavam começando a marcar minha face, me senti velho, de repente a ideia de estar com Perséfone era a coisa mais absurda do mundo para mim, "ela é filha de meu irmão... Dos meus irmãos!", pensei. Demorei para dormir aquela noite, pensei muito em minha família e como os relacionamentos entre parentes próximos era estranhamente comum, então cheguei à conclusão de que era hereditário, minha família não tinha problema algum com o fato de dois irmãos se casarem, como fizeram Zeus e Deméter, e logo eu, que nunca tinha sido a favor do casamento não oficial dos dois, estava apaixonado por minha própria sobrinha, a garota fruto do incesto de meus irmãos. Peguei no sono com esse pensamento, sonhei com Perséfone segurando minha mão, me levando para um lugar distante, ela caminhava a minha frente e olhava para trás sorrindo.

Acordei.

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