Parte V

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Estava preparando o jantar quando ela desceu, não conseguia olhar em seus olhos, por mais que tentasse fazê-lo, o remorso havia tomado conta de mim agora. Percebi que foi até a sala de estar, sentou-se na poltrona de modo que pudesse ficar em frente a janela. Mal conseguia ver sua silhueta ao fundo da sala, iluminada somente pela fraca luz da cozinha onde eu estava, ainda sim, pude notar sua mão se movendo para tirar a poeira do vidro.

- Estou presa aqui? - perguntou ela. Seu tom de voz era baixo, porém passava a sensação de firmeza e convicção, como se já soubesse a resposta mas precisasse ouvi-la.

Despejei uma porção de batatas na água, passei as mãos na camisa, respirei fundo.

- Não, Cora, você pode ir quando quiser. Assim como fez hoje à tarde. Aliás...

- Ainda não sei bem porquê decidi voltar, se é o que quer saber - Ela me interrompeu - Provavelmente porque não saberia para onde ir - Tive a impressão de que ela iria dizer mais alguma coisa, mas preferiu encerrar por ali. Depois desse breve diálogo, voltamos ao silêncio que ainda nos faria companhia por algum tempo.

O jantar foi extremamente desconfortável, comemos na bancada da cozinha, sem dizer sequer uma palavra um ao outro. Ao terminar, Cora se levantou e saiu em silêncio, ouvi a escada ranger quando ela subiu, enquanto eu brincava com a comida, sem fome. De repente ela para, eu olho em direção às escadas e à vejo parada, com a mão apoiada no corrimão.

- Estava ótimo - ela diz, ainda olhando para frente - o jantar, estava ótimo. - Então ela olha para baixo e em seguida para mim - Até amanhã.

Ouvi seus passos se dirigirem para o quarto no andar de cima. Tirei os pratos da bancada e me sentei na sala de estar, permaneci olhando para fora, a natureza estática e serena da noite no campo me fazia perder a noção do tempo. Enquanto o sono não se fazia presente, me pus a pensar no que a última frase de Perséfone significara, aquilo me deixara intrigado. Eventualmente meus pensamentos seguiram outros rumos, passei horas imaginando diversos desfechos para minha situação, não houvera pensado no que deveria fazer, investira tanto tempo em planejar como faria para me isolar com Perséfone, e não havia considerado o que faria depois, não imaginara os prováveis caminhos desastrosos que tal investida poderia resultar, o choque de realidade repentino me fizera suar na fria madrugada. Me ajeitei na poltrona, o que fez com ela exalasse um cheiro de mofo desagradável. Logo após me arrepender de ter me movido, voltei a pensar no cenário em que me via: 

- poderia ter sido pior - pensei - afinal, foi tremenda inocência de minha parte achar que tudo seria um mar de rosas - argumentei comigo mesmo - acho que posso até dizer que as coisas estão indo bem... - pensei, com falso otimismo.

A semana que se seguiu foi uma rotina de longos silêncios pontuados por curtos momentos em que trocávamos palavras, e mesmo quando fazíamos eram as mais curtas frases possíveis, algumas vezes ela só respondia com sons. Eu já não sabia mais o que estávamos fazendo ali, eu acordava, fazia café, acendia a lareira, e me sentava na poltrona com cheiro de mofo, cujo odor parecia diminuir um pouco mais a cada dia - talvez eu só estivesse me acostumando com ele - logo em seguida eu a ouvia descendo as escadas, se espreguiçando enquanto ia até a cozinha pegar uma xícara café. A cena era deslumbrante, era como se eu à visse em câmera lenta, caminhando em minha direção soprando o café quente, as vezes se sentava no sofá grande, as vezes no chão em frente à lareira, as vezes dava bom dia, as vezes não, mas o que ela sempre fazia, e o que mais me intrigava, era permanecer lá, comigo, sempre no mesmo horário, com sua xícara de café, o vapor no frio da manhã, todos os dias, como se aquela nossa rotina fosse tão normal quanto a que tínhamos antes. Aquilo me trazia uma sensação boa, um pouco de esperança no meio de tanta insegurança...

Hades & PerséfoneOnde histórias criam vida. Descubra agora