Parte IV

1.6K 79 22
                                    

Eu não havia escolhido aquele casebre por acaso, aquela fora a casa que herdei de meu pai Cronos, um homem do qual não me alegra lembrar. Por mais que não gostasse, a casa me trazia algumas memórias de infância. Lá, contra minha vontade, eu passava as férias escolares tendo que conviver com aquele ser humano horrível que dizia ser meu pai. Contudo, eu estava disposto a criar boas lembranças ali, e tudo dependeria daquela linda mulher adormecida em meus braços.

O cheiro de mofo e a poeira eram as primeiras coisas que se notava ao entrar, isso tornou a tarefa de carregar Cora para o andar de cima um pouco mais difícil, cada passo fazia o assoalho ranger e deixava pegadas nos velhos degraus de madeira, deitei-a na cama do quarto principal, olhei para o seu rosto sereno por alguns minutos, movi uma mecha de cabelo de seu rosto com um gesto, saí do quarto e tranquei a porta. Definitivamente não me senti bem fazendo aquilo, porém sempre que eu sentia remorso, tentava me lembrar do motivo de estar fazendo, a razão pela qual eu havia arriscado tudo. Era só pensar em seu rosto que todos os meus medos e inseguranças iam embora, mesmo que só por um momento.

Decidi deixá-la para fazer compras, afinal o tempo que passaríamos ali era indefinido. Saí a procura de algum comércio, demorei cerca de duas horas para encontrar algo, no caminho o sentimento de desespero recaía sobre mim em intervalos regulares, comprei provisões para alguns dias. Na volta lembrei-me de me livrar dos celulares, certamente seriam um problema.

Entrei no casebre com as compras em mãos e larguei as sacolas em cima da mesa ainda empoeirada, foi quando ouvi o som de passos agitados no andar de cima. Subi praticamente correndo as escadas barulhentas e parei subitamente em frente ao quarto, fiquei encarando as marcas de desgaste da velha porta de madeira tentando ouvir qualquer som que viesse lá de dentro, ela provavelmente estava com o ouvido na porta agora, era impossível não ouvir os passos no assoalho da casa.

Cinco minutos devem ter se passado e eu ainda estava ali, paralisado, finalmente estava prestes a encarar meu destino, mas não tinha coragem de fazê-lo. Dei as costas e desci, fui ao banheiro, limpei a sujeira do espelho com a mão, olhei para o reflexo dos meus olhos, respirei fundo em uma tentativa quase que instintiva de não deixar a emoção se manifestar, lavei as mãos e o rosto, fechei o registro da torneira que soltou um rangido metálico, saí.

Fui para a cozinha, limpei o que precisava para preparar uma pequena refeição, não podia mais adiar o inevitável. A cozinha, com suas bancadas e armários antiquados de madeira escura, estava agora mais apropriada para o uso, abri as janelas deixei o ar circular, sacudi cortinas e tapetes, varri o assoalho, e lavei utensílios. Horas depois estava no andar de cima novamente, larguei o prato ao lado da porta, ao girar a chave ouvi um som abrupto, devo tê-la acordado, logo em seguida silêncio, pude imaginá-la prendendo a respiração, abri a porta e peguei o jantar. Quando olhei para dentro do cômodo já era tarde, de repente estava sendo jogado contra a parede, olhei para o corredor e Cora estava descendo as escadas correndo. Era o fim, tudo estava acabado, era a última vez que veria a mulher que amava.

Não tive forças para me levantar, devo ter batido a cabeça, fiquei ali sentado por vários minutos, talvez horas, a luz do sol que entrava pela janela no fim do corredor começara a pincelar o cômodo com tons alaranjados, adormeci ou desmaiei em meio a pensamentos que já não me recordo mais. Sonhei que estava em meio a uma grande cidade deserta, e que caminhava a procura de algo ou alguém, um sentimento de tristeza e solidão que me angustiava profundamente. Acordei com a luz avermelhada do sol poente inundando o corredor, era difícil abrir os olhos com toda aquela luz, aos poucos pude distinguir uma figura sentada com a cabeça entre os joelhos, era uma figura triste, talvez decepcionada, me perguntei se aquilo era mais um sonho, e então decidi chamá-la.

- Perséfone?

Hades & PerséfoneOnde histórias criam vida. Descubra agora