Narrado por: Adônis
O amor viera como uma explosão incomensurável dentro de mim, pois senti como se eu fosse a minha própria mãe tendo um filho. Não sabia que amar era sentir-se tão elevado e renascido, como se ao invés de ter vindo de uma árvore eu tivesse surgido a partir dali, quando o amor se instalara em meu coração. Ao menos algum dia poderia dizer para alguém que amei, mas esse amor, puro e espectral, se definhara assim que recobrei a consciência e descobri que a mulher que amava eu mesmo tinha tirado a vida. Afrodite viera do fruto do amor e se fora com a intoxicação do puro e genuíno ódio.
— Joguei o corpo de Afrodite dentro do mar do Pier Santa Monica, logo alguém encontrará àquele corpo nas areias da praia, pois em breve, ela surgirá das espumas das águas!
Perséfone ria, depois de tudo que acontecera com ela e com a outra deusa. Ria sem precedentes — como se nada tivesse acontecido — e meu luto encontrava o véu da escuridão e cada segundo que passava, eu era encoberto pelo silêncio e pela tristeza. Afrodite se fora.
— Que tão irmos ao Pacific Park? — sugeriu animada — Você precisa mudar essa cara, Adônis. O que passou, passou, aliás, você estava influenciado por auras sombrias e desconhecidas, agora está tudo normal outra vez, é preciso dar uma relaxada.
Por um lado ela estava certa e por outro nem tanto, não queria sair para lugar algum, no entanto, ficar ali sentado no sofá e olhando para a enorme poça de sangue secar lentamente no tapete cor de rosa me deprimia ainda mais. Precisa de ar livre.
***
Quando chegamos ao parque me senti outra vez perdido, desamparado, e se não fosse por Perséfone, eu desapareceria em segundos entre turistas, e balões, e brinquedos giratórios e barulhentos. Sentir a maresia tocar a minha face e adentrar em minhas narinas era uma sensação indescritível.
Fomos algumas vezes na montanha-russa, na roda gigante e em alguns outros brinquedos menores. Perséfone comprou pipoca para nós, algodões-doce coloridos e maçãs do amor, tão amáveis e apetitosas quanto à deusa que se fora mais cedo. Sentir saudades das conversas dela e de seu perfume era inevitável. O aroma marítimo que exalava no ar amenizava a minha dor gradualmente e saber que Afrodite estava naquele momento entre as ondas era um tanto libertador.
— Está pensando nela, não é? — perguntou Perséfone enquanto dávamos mais uma volta na roda gigante. Meus olhos observavam ao longe, as ondas do mar quebrando na areia fina e extensa por todo o litoral e também na linha do horizonte, em que o sol se escondia tingindo o céu de roxo-alaranjado.
Assim que descemos da roda-gigante, não queria ir mais para nenhum outro brinquedo, saí do parque seguido por Perséfone e caminhei pela areia aquecida pelo sol que desaparecia lentamente.
— Você não sente calor nunca com esse casaco? — perguntei admirado por não notar uma gota de suor caindo de seu rosto perfeito desde que saímos do hotel. Sentia-me ensopado por todo o corpo, e ela, mesmo com um casaco de pele, asfixiante, sobre seu vestido de seda azul turquesa, parecia intocada pelas ondas de calor que dançavam invisíveis no ar.
Ela riu, mas respondeu:
— Me acostumei tanto com o calor do inferno que o calor daqui pra mim é frio — respondeu ela — Se bem que hoje é um dia atípico, está mais calor mesmo, vejo pelas pessoas à nossa volta, também estão se sentindo desconfortáveis e se você, um deus, está quase passado mal. Imagina então, esses pobres mortais?
Caminhamos pela praia em silêncio por algum tempo, após sua última resposta. Um deus... Eu, um assassino, chamado de algo além de minha compreensão? O destino quis que eu renascesse a essa época, mas até agora fora somente para matar a criatura que mais amava nessa nova vida, não servi para mais nada. Sinto calor, pois sou tão humano quanto esses humanos que andam à minha volta. Tenho sentimentos, sou imperfeito. Sou como eles.
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O retorno das auras sombrias e da escuridão - conto
Short StoryEle retornou... Adônis, e elas o querem, a todo custo! Afrodite e Perséfone... duas deusas olímpicas; uma reencarnada e outra conservada pelo mármore do inferno. Quando deusas reencontram o belo recém-renascido de uma árvore, Adônis, elas procurarão...