3 - Adônis

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Narrado por: Adônis

Meus lábios sentiam o gosto de madeira apodrecida e úmida à minha frente, meus braços e pés tocavam partes rígidas, secas e com farpas, que mais faziam cócegas do que doíam. Meu corpo crescia e lutava contra as paredes grossas e podres de uma árvore, que me servia de útero.

Meus olhos continuavam fechados, esperando o chamado da luz e ela veio silenciosa, sorrateira e brilhante. Todos os tipos de sons diferentes chegavam aos meus ouvidos virgens, a todo instante; sentir o som lá de fora me deixava excitado e pronto para conhecer e viver fora de minha mãe, a árvore.

O tronco dela abria-se conforme eu crescia, uma fenda surgia cada vez maior nos dias infinitos que se passavam. Até que meu corpo não se mexeu mais para canto algum e ouvi um estalo de rompimento, depois um silêncio profundo. Meu corpo se contorceu e a árvore explodiu, me cuspindo para fora, em meio de pedaços de madeira e folhas. Eu nasci.

A lua prateada no céu indicava a noite. Tudo escuro e silencioso, meu corpo sentia abaixo um manto esverdeado e macio; grama molhada e recém-aparada. A árvore em que vivi por séculos a fio, enfim morreu em paz, sem eu lá dentro, me espremendo e querendo que eu saísse a todo instante. Não sentirei saudades do gosto podre e úmido do interior dela.

Levantei-me do chão um pouco zonzo e sentei em um banco de frente para uma rua sem movimento, os postes estavam acesos e emitindo uma luz alaranjada e tremeluzente, logo se apagou e no horizonte vi outra chama se erguendo devagar, luminosa e faiscante. O dia amanhecia. Era o meu primeiro amanhecer fora do útero.

Fiquei sentado ali até sentir os raios de sol tocar o meu corpo nu, sujo e úmido. Logo carros começaram a passar de um lado e para outro, rápidos e barulhentos. Pessoas surgiam do nada, apressadas e olhando para algo em suas mãos, elas tocavam o objeto com o dedo, a todo o momento, sem parar, incansáveis e sem piscar. Celulares.

Queria um daqueles para mim, mas antes precisava daquilo que vestiam, roupas. Algumas pessoas parecidas comigo vestiam calças sociais e camisa engomada e as que vestiam saias e tinham cabelos longos e bem penteados, tinha um rosto mais delicado e atraente. Precisava de calças sociais e camisa engomada, logo. Alguns que passavam perto de mim se assustavam e andavam ainda mais depressa, para eles eu deveria ser um monstro, mas estava longe de ser um. Eu era um deus.

Como arranjarei roupas?, pensei comigo mesmo enquanto observava o movimento a minha volta, incansáveis, apressados. Eles iam para algum lugar — Mas para onde?

Observei as lojas dispostas uma ao lado da outra na calçada de frente para a praça onde me encontrava sentado e encontrei uma onde havia uma enorme vitrine com pessoas que não se movimentavam e sem cabeças, algumas com cabeças entravam na loja e saíam com sacolas e sorrindo. Ali era o local onde se comprava as roupas.

— Preciso ir lá! — falei animado e olhando para a rua movimentada, assim que os carros pararam um atrás do outro, levantei-me e me apressei para atravessar a rua, antes que voltassem a correr e por sua vez me atropelarem. Atravessei a rua, ileso.

Olhei para a vitrine, havia muitas mulheres lá dentro atendendo e alguns homens e mulheres sendo atendidos. Muitos rostos belos e atraentes. Entrei.

Gritos, muitos deles e pessoas correndo. Olhos assustados olhavam para mim, como se eu fosse fazer algo ruim a elas. Parei próximo a um manequim e fiz um sinal com a mão, para uma das atendentes menos assustada. Ela me fitou, com a testa franzida, aproximou-se e perguntou:

— Você quer um destes?

— Sim. — respondi e a minha voz saiu em um tom brando e sério. Não queria assustar ninguém, muito menos a mulher simpática.

Ela assentiu e me conduziu com cautela para os fundos da loja, onde os olhares assustados e apreensivos ficaram para trás.

— Você não deve ser da cidade. Ah! Isso não importa... você tem uma boa aparência para ser algum perdido, desses que vivem nas ruas... — disse ela enquanto abria algumas caixas das prateleiras e colocavam-nas no balcão. — Qual o seu nome rapaz? Sou Mariana.

— Adônis.

A mulher arrepiou-se, deu para ver seus pelos eriçados nos braços e nas pernas.

— Apropriado. — disse ela com um sorriso e suas bochechas ruborizaram-se. — Não costumamos dar roupas a ninguém, pois não podemos, mas darei alguma desculpa aos nossos clientes que estão lá na entrada. Nem sei o que dizer...

Ela saiu e deixou em meus braços uma calça cinza, um par de meias, cuecas, cinto, um par de sapatos e uma camisa engomada branca. Troquei-me sem pensar, pois precisa parecer decente. Era um instinto dentro de mim que clamava por aquilo.

Vestido, saí dos fundos e fui para frente da loja.

— Você precisa ir embora antes que o gerente chegue. — disse Mariana.

— Obrigado. — respondi com um meio-sorriso.

Enquanto saía da loja ouvi pelos meus ombros:

— Aquele cabelo de folhas dele é de verdade?!

— Não sei.

— Rapaz estranho, mas muito gostoso.

— Você viu aquela tromba? — disse uma das mulheres, mas não entendi o que ela quis dizer. Agora podia caminhar entre as pessoas e os olhares diminuiriam.

Alguns me olhavam de esguelha, mas logo percebi que era normal aquilo, pois era um tanto maior e mais alto que a todos em minha volta.

Andei por várias ruas do centro ealgo dentro de mim dizia que encontraria alguém por essas ruas e que faria todoo sentido de minha existência. E ao atravessar uma avenida avistei, andando eexalando uma aura de charme e amor. Era ela.

O retorno das auras sombrias e da escuridão - contoOnde histórias criam vida. Descubra agora