A FUTURA EVOLUÇÃO DO CÉREBRO

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É típico do futuro ser perigoso... Os principais avanços da civilização são processos, todos
eles, que destroem as sociedades em que ocorrem. ALFRED NORTH WHITEHEAD – Adventure in Ideas
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A voz do intelecto é suave, mas não descansa até ter ganho um ouvinte. Em última análise, após inumeráveis derrotas, ela vence. Este é um dos poucos pontos em relação aos quais podemos ser
otimistas no tocante ao futuro da humanidade. SIGMUND FREUD – The Future of an Illusion
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O espírito de um homem é capaz de tudo – porque tudo está nele, todo passado e todo o futuro. JOSEPH CONRAD – Heart of Darkness
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O cérebro humano parece permanecer em inquieta trégua com eventuais escaramuças e raras batalhas. A existência de componentes cerebrais com predisposição a certos comportamentos não representa um convite ao fatalismo ou ao desespero; temos considerável controle sobre a importância relativa de cada componente. A anatomia não é destino, mas também não e irrelevante. Pelo menos algumas doenças mentais podem ser compreendidas em termos de um conflito entre facções neurais em disputa. A repressão mutua entre os componentes se dá em muitas direções. Já abordamos a repressão límbica e neocortical do complexo-R, mas, através da sociedade, pode também haver repressão do complexo-R pelo neocórtex e repressão de um hemisfério pelo outro.
Em geral, as sociedades humanas não são dadas a inovações. São hierárquicas e realísticas. Sugestões de mudanças são recebidas com suspeita: implicam uma desagradável variação futura do ritual e da hierarquia: a troca de um conjunto de rituais por outro, ou talvez por uma sociedade menos estruturada, com menos rituais. Mas mesmo assim, às vezes a sociedade precisa modificar-se. “Os dogmas do silencioso passado já não convém ao tempestuoso presente” – era assim que Abraão Lincoln expressava essa verdade. Grande parte das dificuldades encontradas ao se tentar reestruturar a sociedade americana e outras sociedades advém da resistência oferecida por grupos com interesse no status quo. É possível que mudanças importantes façam descer muitos degraus aqueles que agora ocupam elevadas posições hierárquicas. Isso parece indesejável e a resistência sobrevém.
Contudo, percebe-se certa modificação (e eu diria até uma modificação considerável) na sociedade ocidental – não o suficiente, é claro, porém muito mais do que em quase todas as outras sociedades. As culturas mais antigas e mais estáticas oferecem muito mais resistência a transformações. No livro The Forest People, de Colin Turnbull, há uma pungente descrição de uma menina pigméia aleijada que foi presenteada por antropólogos visitantes com uma fabulosa novidade tecnológica, uma muleta. Apesar de ter aliviado sobremaneira o sofrimento da menina, os adultos, inclusive seus pais, não mostraram o menor interesse pelo invento. Existem muitos outros casos de intolerância a novidades nas sociedades tradicionais; e diversos exemplos pertinentes poderiam ser extraídos das vidas de homens como Leonardo da Vinci, Galileu, Desiderius Erasmus, Charles Darwin ou Sigmund Freud.
O tradicionalismo de sociedades em estado estatístico geralmente é adaptativo: as formas culturais têm evoluído penosamente no decorrer de muitas gerações e reconhecidamente servem bem. À semelhança das mutações, qualquer mudança aleatória tende a servir menos. Mas, também como as mutações, qualquer mudança aleatória tente a servir menos. Mas, também com as mutações, as mudanças são necessárias caso se queira atingir uma adaptação a novas circunstancias ambientais. A tensão entre essas duas tendências caracteriza grade parte do conflito político de nossa era. Em uma época marcada por um ambiente social e físico externo rapidamente mutável – como é a nossa – a acomodação à mudança e sua aceitação são adaptativas; nas sociedades dominadas pelos ambientes estáticos, isso não ocorre. Os estilos de vida caçador/coletor serviram bem ao homem na maior parte de sua historia, e eu acho que há indícios insofismáveis de que, de certa forma, fomos moldados pela evolução para tal cultura; quando abandonamos a vida de caçador/coletor, abandonamos também a infância de nossa espécie. Culturas à base de caça e coleta, ou de elevada tecnologia, são produtos do neocórtex. Estamos agora irreversivelmente encaminhados para a última trilha. Mas vai levar algum tempo até os acostumarmos a isso.
A Grã-Bretanha produziu uma série de cientistas e estudiosos multidisciplinares admiravelmente dotados que são por vezes classificados como polímatas. Esse grupo abrange, nos últimos tempos, Bertrande Russell, A. N. Whitehead, J. B. S. Haldane, J. D. Bernal e Jacob Bronowski. Russel comentou que o desenvolvimento de indivíduos assim dotados exigiu uma infância na qual havia pouca ou nenhuma pressão para a submissão, uma época na qual a criança pudesse desenvolver e perseguir seus próprios interesses, não importa qual insólitos ou bizarros. Em virtude de fortes pressões pra a submissão social tanto por parte do Governo quando por grupos minoritários nos Estados Unidos – e até mais na União Soviética, no Japão e na República Popular da China – penso que esses paises estão produzindo proporcionalmente menos polímatas. Acho também que existem indícios de que a Grã- Bretanha se encontra em franco declínio quanto a esse aspecto.
Principalmente hoje, quando o homem se depara com problemas tão complexos e difíceis, o desenvolvimento de um pensamento abrangente e poderoso constitui uma necessidade desesperada. Deve haver um meio, compatível com os ideais democráticos apoiados por todos esses países, de estimular, em um contexto humanitário e carinhoso, o desenvolvimento intelectual de jovens especialmente promissores. Em vez disso, encontramos nos sistemas de instrução e exame da maioria desses países uma ritualização quase reptiliana do processo educativo. Eu às vezes me pergunto se o apelo ao sexo e à agressão na televisão e nos filmes contemporâneos não reflete o fato de que o complexo-R é em desenvolvido em todos nós, enquanto muitas funções neocorticais são, em parte pelo caráter repressivo das escolas e das sociedades, mais raramente expressas, menos comuns e insuficientemente valorizadas.
Como conseqüência das imensas transformações sociais e tecnológicas dos últimos séculos, o mundo não anda funcionando bem. Não vivemos em sociedades tradicionais e estáticas. Não obstante, nossos governos, resistindo às transformações, agem como se assim vivêssemos. A menos que nos destruamos completamente, o futuro pertence às sociedades que, não ignorando as partes reptilianas e mamíferas de nosso ser, permitam os florescimentos componentes caracteristicamente humanos de nossa natureza; às sociedades que incentivem a diversidade e não a submissão; às sociedades sequiosas por investir recursos em uma série de experiências sociais, políticas, econômicas e culturais e preparadas para sacrificar as vantagens a curto prazo pelo beneficio a longo prazo; às sociedades que tratem as novas idéias como caminhos delicados, frágeis e imensamente valiosos para o futuro.
Uma melhor compreensão do cérebro pode também um dia repousar sobre temas tão controvertidos quanto a definição de morte e a aceitação do aborto. A moral do Ocidente parece ser a de que é permissível, por uma boa causa, matar primatas não- humanos e certamente outros mamíferos; mas não é permissível (aos indivíduos) matar seres humanos sob circunstâncias semelhantes. A implicação lógica é que são as qualidades caracteristicamente humanas que fazer a diferença. Da mesma forma, se consideráveis partes do neocórtex estão funcionando, o paciente comatoso pode ser considerado vivo no sentido humano, mesmo que haja prejuízo maior das outras funções físicas e neurológicas. Por outro lado, um paciente vivo, mas sem qualquer sinal de atividade neocortical (inclusive as atividades neocorticais durante o sono), pode ser descrito, no sentido humano, como morto. Em muitos desses casos, o neocórtex interrompeu sua atividade irreversivelmente, mas o sistema límbico, o complexo-R e estruturas inferiores do tronco cerebral ainda estão funcionando, não sendo prejudicadas as funções fundamentais, quais sejam a respiração e a circulação sangüínea. Penso que seja necessário mais estudo a respeito da fisiologia do cérebro humano até que uma definição legal bem fundamentada de morte possa ser geralmente aceita. O caminho para tal definição provavelmente nos impelirá através de considerações sobre o neocórtex em contraposição aos outros componentes do cérebro.
Semelhantes idéias poderiam ajudar a resolver um grande debate sobre o aborto surgido nos Estados Unidos no final da década de 70 – uma controvérsia caracterizada em ambos por extrema veemência e uma negação de qualquer mérito aos pontos de vista opostos. Em um dos extremos encontra-se a posição de que a mulher tem o direito inato do “comando de seu próprio corpo”, que abrange, afirma-se, a morte de um feto sob diversas alegações, inclusive a falta de inclinação psicológica e a incapacidade econômica de criar um filho. No outro extremo está a existência de um “direito à vida”, a afirmação de que matar, mesmo que seja um zigoto, o óvulo fertilizado antes da primeira divisão embrionária, é assassinato porque o zigoto tem o “potencial” de se tornar um ser humano. Eu concordo que, em um tema tão carregado de emoção, qualquer proposta não receba os aplausos dos partidários de ambos os extremos, e às vezes nossos corações e mentes nos levam a conclusões diferentes. No entanto, à luz de alguns conceitos expostos em capítulos anteriores, gostaria de oferecer pelo menos uma tentativa de solução razoável.
Não há duvida de que o aborto legalizado evita a tragédia e a carnificina do aborto ilegal e incompetente, e que em uma civilização cuja própria perpetuação está ameaçada pelo espectro do crescimento populacional desenfreado, a ampla disponibilidade de abortos médicos pode servir como uma necessidade social importante. O infanticídio, porém, resolveria ambos os problemas e tem sido largamente utilizado por muitas comunidades humanas, inclusive segmentos da clássica civilização grega, tão aceita como nosso antecedente cultural. Continua sendo praticado hoje em dia: em muitas partes do mundo, um em cada quatro recém-nascidos não sobrevive ao primeiro ano de vida. Contudo, de acordo com nossas leis e costumes, o infanticídio é crime. Considerando-se que uma criança nascida prematuramente no sétimo mês de gestação não difere basicamente de um feto in utero no sétimo mês, parece-me que o aborto, pelo menos no último trimestre, em muito se aproxima do assassinato. As alegações de que o feto no terceiro trimestre ainda não esta respirando me causam espécie: será permissível cometer infanticídio após o nascimento se o cordão umbilical ainda não foi seccionado, ou se a criança ainda não respirou? Da mesma forma, se sou psicologicamente despreparado para conviver com o um estranho – no acampamento do Exército ou no dormitório do colégio – não tenho por conseguinte o direito de mata-lo, e meu aborrecimento pelo uso dos impostos que pago não me reserva o direito de exterminar os recebedores desses impostos. O ponto de vista das liberdades civis é frequentemente alegado em tais questões. Por que, indaga-se às vezes, as crenças dos outros sobre esse assunto devem estender-se a min? Mas aqueles que não apóiam pessoalmente a proibição convencional contra o crime são enquadrados por nossa sociedade do código criminal.
No extremo oposto da discussão, a expressão “direito à vida” constitui excelente exemplo de expressão de efeito, destinada a inflamar e não a iluminar. Não existe direito à vida em nenhuma sociedade da Terra atualmente, e nunca houve em tempo algum (com algumas raras exceções, como os jainistas, da Índia). Criamos animais em fazendas para devorá-los, destruímos florestas, poluímos rios e lagos até que os peixes lá não possam viver, caçamos antílopes e cervos por esporte, leopardos para lhes tirar o couro e baleias para fazer comida de cachorro; capturamos golfinhos, arfando e gemendo, em grandes redes de atum e matamos a estocada os filhotes de foca para “controle populacional”. Todos esses animais e vegetais são tão vivos quanto nós. O que se protege em algumas sociedades humanas não é a vida em si, mas a vida humana. Mesmo com essa porém, nós encaramos os efeitos das guerras “modernas” sobre as populações civis como um tributo tão terrível que temos medo, a maioria de nós, de pensar nisso de modo mais profundo. Frequentemente tais assassinatos em massa são justificados por redefinições raciais ou nacionalistas de nossos adversários como a eliminação de seres menos que humanos.
Da mesma forma, o argumento do “potencial” de ser tornar humano parece-me particularmente fraco. Qualquer óvulo ou esperma, sob circunstancias adequadas, tem o potencial de se tornar humano. Contudo, a masturbação masculina e as poluções noturnas são em geral consideradas atos naturais, não estando sujeitos a punicaocriminal. Em uma única ejaculação são lançados espermatozóides em numero suficiente para gerar centenas de milhões de seres humanos. Além disso, é possível que, em futuro não muito remoto, sejamos capazes de fazer um clone de um ser humano integral a partir de uma única célula retirada de qualquer parte do corpo do doador. Nesse caso, qualquer célula de meu corpo tem a potencialidade de se tornar um ser humano se adequadamente preservada até a ocasião da tecnologia prática de clones. Estarei cometendo assassinato em massa se cortar meu dedo e perder uma gota de sangue? Os temas são inquestionavelmente complexos. É lógico que a solução deve
envolver um consenso entre numerosos valores importantes, mas conflitantes. A questão prática fundamental é determinar quando o feto se torna humano. Isso, por sua vez, depende do que consideramos humano. Certamente que não é ter forma humana, porque um artefato de matéria orgânica que se assemelhasse a um ser humano, embora  construído com essa finalidade, certamente não seria considerado humano. Da mesma forma, um ser extraterrestre inteligente que não se assemelhasse a um ser humano, mas que possuísse atributos éticos, intelectuais e artísticos superiores aos nossos certamente estaria protegido pela proibição de assassinato. Não é nosso aspecto que especifica o que é a humanidade, mas aquilo que somos. O motivo pelo qual o assassinato de seres humanos é proibido deve repousar em alguma qualidade humana, uma qualidade que prezamos em particular, que poucos outros organismos da Terra apreciam. Não pode ser a capacidade de sentir dor ou emoções profundas, pois estas certamente são comuns a muitos dos animais que deliberadamente dilaceramos.
Essa qualidade essencialmente humana, creio, só pode ser nossa inteligência. Nesse caso, a particular santidade da vida pode ser identificada com o desenvolvimento e o funcionamento do neocórtex. Não podemos exigir seu desenvolvimento integral, pois isso só ocorre muitos anos após o nascimento. Mas talvez possamos estabelecer a transição para a humanidade na ocasião em que se inicia a atividade neorotical, determinada pelo eletroencefalograma do feto. Algumas perspectivas da época na qual o cérebro desenvolve um caráter distintamente humano surgem a partir das observações embriológicas mais simples. Muito pouco trabalho foi realizado neste campo até o momento, e me parece que tal investigação em muito contribuiria pra se atingir um acordo aceitável no debate sobre o aborto. Não há dúvida de que haveria uma variação de feto a feto quanto à ocasião de inicio dos primeiros sinais neoroticais ao EEG, e uma definição legal do início da vida caracteristicamente humana deve ser estipulada de modo conservador – ou seja, de acordo com o feto mais jovem que exibe tal atividade. Talvez a transição coincidisse com o final do primeiro trimestre ou o inicio do segundo trimestre da gestação. (Aqui estamos falando do que, em uma sociedade racional, deve ser proibido por lei qualquer pessoa que considera o aborto de um feto mais jovem como crime não deve ser obrigada a realizar ou aceitar tal ato.)
Uma aplicação coerente destas idéias deve, contudo evitar o chauvinismo humano. Se existem outros organismos que compartilham da inteligência de um ser humano um tanto retardado, mas complemente desenvolvido, devem pelo menos receber a mesma proteção contra o assassinato que nós pretendemos estender aos seres humanos no final de sua vida intra-uterina. Uma vez que os indícios da inteligência nos golfinhos, nas baleias e nos antropóides são agora pelo menos convincentes, qualquer posição moral coerente a respeito do aborto deve, segundo minha opinião, abranger firmes críticas contra o massacre gratuito desses animais. Mas a chave definitiva para a solução da controvérsia sobre o aborto seria a pesquisa da atividade neocortical antes do parto. Que dizer da evolução do cérebro humano? Existe um conjunto amplo e
crescente de indícios de que muitas formas de doença mental resultam de disfunções químicas ou das ligações no cérebro. Como muitas doenças mentais possuem os mesmos sintomas, podem ter origem nas mesmas disfunções e devem ser suscetíveis aos mesmos tratamentos.
O neurologista inglês Hughlings Jackson, um pioneiro do século XIX, observou: “Conhece os sonhos e conhecerás a insanidade”. Os indivíduos intensamente privados de sonhos frequentemente têm alucinações durante o dia. A esquizofrenia também se acompanha amiúde de distúrbios de sono norturno, porém não se sabe se isso representa causa ou conseqüência. Um dos aspectos mais notáveis da esquizofrenia é o estado de infelicidade e desespero m que geralmente vivem os que dela sofrem. Seria a esquizofrenia o que ocorre quando os dragões não mais se encontram acorrentados à noite, quando rompem os grilhões do hemisfério esquerdo e eclodem à luz do dia? Outras doenças talvez resultem de um distúrbio de função do hemisfério direito: os obsessivo-compulsivos, por exemplo, muito raramente apresentam repentes intuitivos. Em meados da década de 60, Lester Grinspoon e seus colaboradores, na
Faculdade de Medicina de Harvard, realizaram uma série de experiências controladas sobre o valor relativo das diversas técnicas terapêuticas pra o tratamento da esquizofrenia. Eles são psiquiatras, e se tivessem alguma tendência, esta seria na direção das técnicas verbais, e não das farmacológicas. Contudo, para sua surpresa, descobriram que a tioridazina (um dos medicamentos de um grupo de drogas antipsicóticas de eficácia aproximadamente igual, conhecido como fenotiazinas), tranqüilizante recentemente criado, era incomparavelmente mais eficaz no controle, se não na cura da doença; na realidade, descobriram que a tioridazina pura era pelo menos tão eficaz – no consenso dos pacientes, de seus parentes e dos psiquiatras – quanto a tioridazina aliada à psicoterapia. A integridade dos experimentadores em face desse inesperado resultado é de pasmar. (É difícil conceber qualquer experiência que convencesse os partidários de diversas filosofias políticas ou religiosas da superioridade de uma doutrina antagônica.)
Pesquisas recentes mostram que endofirnas, pequenas moléculas protéicas naturais dos cérebros dos ratos e outros mamíferos, podem provocar nesses animais acentuada rigidez muscular e estupor que lembram a catatonia esquizofrênica. A causa molecular ou neurológica da esquizofrenia – outrora responsável por um em cada três leitos hospitalares ocupados nos Estados Unidos – ainda é desconhecida; mas não é pouco plausível que algum dia cheguemos a descobrir precisamente o local ou o conjunto de produtos neuroquímicos no cérebro que determinam essa disfunção.
Uma curiosa questão ética surge com as experiências de Grinspoon e colaboradores. Os tranqüilizantes agora são tão eficazes no tratamento da esquizofrenia que é amplamente antiético privar o paciente esses medicamentos. A implicação é que as experiências que demonstram a eficácia dos tranqüilizantes não podem ser repetidas. É considerada uma crueldade desnecessária negar ao paciente o melhor tratamento disponível para sua doença. Consequentemente, não se pode mais manter um grupo de controle de esquizofrênicos sem medicação tranqüilizante. Se experiências críticas na quimioterapia das disfunções cerebrais só podem ser realizadas uma vez, elas tem de ser realmente muito bem feitas.
Um exemplo ainda mais marcante de tal quimioterapia é o uso de carbonato de lítio no tratamento dos maníaco-depressivos. A ingestão de doses cuidadosamente controladas de lítio, o metal mais leve e mais simples, produz surpreendentes melhoras – novamente conforme a perspectiva dos pacientes e de outros – nessa terrível doença. O motivo pelo qual um tratamento tão simples é tão benéfico, mas provavelmente, relaciona-se à química enzimática do cérebro.
Uma doença mental muito estranha é a doença de Gilles de la Tourette (assim denominada, como sempre, em homenagem ao médico que primeira mente a descreveu e não ao portador mais célebre do mal). Um dos muitos distúrbios motores e de fala que se encontram entre os sintomas dessa doença é uma notável compulsão a proferir – no idioma em que o paciente tem maior fluência – uma ininterrupta seqüência de obscenidade e impropérios. Os médicos descrevem a identificação dessa doença como um “diagnóstico de corredor”. O paciente pode controlar-se com grande dificuldade no decorrer de uma curta visita médica; assim que o médico sai do quarto e chega ao corredor, a escatologia desaba como a inundação de uma represa rompida. Existe um lugar no cérebro que forma os “palavrões” (e os antropóides podem possuí-lo).
São muito poucas as palavras que o hemisfério direito pode comandar convenientemente – não mais do que olá, até logo e... algumas obscenidades selecionadas. Talvez a doença de Tourette comprometa apenas o hemisfério esquerdo. O antropólogo inglês Bernad Campbell, da Universidade de Cambridge, sugere que o sistema límbico é muito bem integrado com o hemisfério cerebral direito, o qual, como já vimos, lida melhor com as emoções que o hemisfério cerebral esquerdo. Não importa que outras partes estejam comprometidas, as obscenidades levam consigo grande carga emocional. Contudo, a doença de Gilles de la Tourette, complexa como é, parece uma deficiência especifica de um transmissor neuroquímico e é aliviada por doses cuidadosamente controladas de haloperidol.
Indícios recentes mostram que hormônios límbicos tais como o HACT e a vasopressina são capazes de melhorar enormemente a capacidade de reter a memória e relembrar dos animais. Esses e exemplos semelhantes sugerem, se não a perfeição definitiva do cérebro, pelo menos previsões de substancial melhora – talvez alterando a abundância ou controlando a produção de pequenas proteínas cerebrais. Tais exemplos também aliviam sobremaneira a carga de culpa habitualmente experimentada pelos que sofrem de doença mental, carga essa raramente sentida por vitimas de outras doenças, como o sarampo, por exemplo.
A notável fissurização, as circunvoluções e as dobras corticais do cérebro, assim como o fato de que o cérebro se adapta harmoniosamente ao crânio, constituem claras indicações de quão difícil será acrescentar mais massa cerebral à caixa craniana atual. Cérebros maiores com crânios maiores não poderiam ter-se desenvolvido até muito pouco tempo atrás em virtude dos limites impostos pelo tamanho da pelve e do canal de parto. O advento, porém, do parto cesário – raramente realizado há 2 mil anos e muito mais freqüente hoje em dia – permite, com efeito, maiores volumes cerebrais. Outra possibilidade é a tecnológica médica suficientemente adiantada para permitir o desenvolvimento a termo de um feto fora do útero. Entretanto, a velocidade da transformação evolutiva é tão lenta que nenhum dos problemas que nos assolam hoje seria superado por aumentos neocorticais importantes e conseqüentes inteligências superiores. Antes disso, mas não em futuro imediato, é possível que a cirurgia seja capaz de melhorar os componentes do cérebro que consideramos valiosos e inibir ainda mais os componentes que podem ser responsáveis pro perigos e contradições que pairam sobre a humanidade. Contudo, a complexidade e a redundância da função cerebral tornam impraticável tal seqüência de eventos para o futuro próximo, mesmo que isso fosse socialmente desejável. Mas fácil será o homem construir genes antes de cérebros. Comenta-se às vezes que essas experiências podem dotar governos
inescrupulosos – e existem muitos deles – com armas capazes de controlar seus cidadãos ainda mais. Podemos imaginar, por exemplo, um governo que implante centenas de minúsculos eletrodos esses capazes de estimulação por controle remoto – talvez em freqüências ou códigos de acesso conhecidos apenas pelo governo. Quando a criança crescer, o governo pode estimular seus centros de prazer caso tenha realizado, tanto em trabalho como m ideologia, uma ideologia, uma aceitável jornada diária; em caso contrário, poderá estimular seus centros de dor. Essa é uma visão de pesadelo, mas não considero que represente um argumento contra experiências a respeito da estimulação elétrica do cérebro. É, em vez disso, um argumento contra a permissão de que o governo controle os hospitais. Qualquer povo que permitir que seu governo implante tais eletrodo já terá permitido a batalha e bem merecerá o que daí surgir. Com em todos os pesadelos tecnológicos, a principal tarefa consiste em prever o que é possível; educar o público quanto ao uso correto e errôneo; e prevenir os abusos oriundos da organização, da burocracia e do governo.
Já existe uma série de psicotrópicos e de drogas que alteram o humor e que, em diferentes graus, são perigosos e benignos (o álcool etílico é o mais amplamente usado e um dos mais perigosos). Aparentemente, atuam em áreas específicas do complexo-R, do sistema límbico e do neocórtex. Se a tendência atual persistir, mesmo sem o incentivo dos governos, as pessoas buscarão a síntese laboratorial caseira e a auto-experiência com essas drogas – uma atividade que representa um pequeno novo passo em direção ao nosso conhecimento do cérebro seus distúrbios e seus potenciais ocultos. Há motivos para pensar que muitos alcalóides e outras drogas que afetam o
comportamento funcionam por serem quimicamente semelhantes às pequenas proteínas cerebrais naturais, das quais as endorfinas constituem um exemplo. Muitas dessas pequenas proteínas agem sobre o sistema límbico e se relacionam com nossos estados emocionais. Agora é possível manufaturar pequenas proteínas constituídas por qualquer seqüência especifica de aminoácidos. Portanto, em futuro próximo, será sintetizada grande variedade de moléculas capazes de provocar os estados emocionais humanos, inclusive os muito raros. Existem, por exemplo, indícios de que a atropina – um dos componentes mais ativos da cicuta, do digital, da beladona e do estramônio (figueira- do-inferno) – provoca a ilusão de voar; e efetivamente essas plantas parecem conter principais constituintes de ungüentos auto-administrados à mucosa genital por bruxas da Idade Média – as quais, em vez de voarem realmente, como se vangloriavam, faziam uma viagem de atropina. Entretanto, uma vívida alucinação de vôo é uma sensação demasiada especifica para ser transmitida por uma molécula relativamente simples. Talvez exista uma variedade de pequenas proteínas que serão sintetizadas e que produzirão estados emocionais de uma espécie jamais experimentada pelos seres humanos. Esse é um dos muitos progressos potenciais a curto prazo na química cerebral que prometem grandes efeitos para o bem ou para o mal, de acordo com o critério daqueles que conduzem, controlam e aplicam essa pesquisa.
Quando deixo meu escritório e entro no meu carro, a menos que faça um esforço de vontade, dirijo-me para casa. Quando saio de casa e entro no carro, a menos que faça semelhante esforço consciente, há uma patê de meu cérebro que engendra as coisas de tal forma que acabo chegando ao escritório. Se eu mudar de casa ou de escritório, após um curto período de aprendizado, os novos locais suplantam os antigos e, seja qual for o mecanismo cerebral que comanda tal comportamento, esse adapta-se prontamente às novas coordenadas. Isso em muito se assemelha à autoprogramacao de uma parte do cérebro que funciona como um computador digital. A comparação é ainda mias surpreendente quando nos damos conta de que os epilépticos , durante uma convulsão psicomotora, frequentemente realizam uma seqüência de atos exatamente iguais, com a única diferença de talvez ultrapassarem mais sinais vermelhos do que eu habitualmente ultrapasso, mas não têm memória consciente de terem praticado essas ações uma vez cessada a crise convulsiva. Esse automatismo é um sintoma típico da epilepsia com foco no lobo temporal; também caracteriza a primeira hora depois que eu acordo. Certamente, nem todo o cérebro funciona com um computador digital simples; a parte que faz a reprogramação, por exemplo, é bastante diferente, mas existem semelhanças suficientes para sugerir que se pode organizar, de forma construtiva, uma disposição de trabalho compatível entre computadores eletrônicos e pelo menos alguns componentes do cérebro – em íntima associação neurofisiológica.
O neurofisiologista espanhol José Delgado inventou circuitos que operam por controle remoto através de interação entre eletrodos implantados nos cérebros de chimpanzés e computadores eletrônicos. A comunicação entre o cérebro e o computador é obtida através do rádio. A miniaturização dos computadores eletrônicos atingiu agora uma fase al que esses circuitos podem ser “compactados” e não exigir uma ligação pelo rádio com um remoto terminal de computador. Por exemplo, é inteiramente possível projetar um circuito auto-suficiente no qual os sinais de convulsão epiléptica iminente sejam reconhecidos e os centros cerebrais implicados sejam automaticamente estimulados a fim de deter ou atenuar o ataque. Ainda não podemos sutilizar esse procedimento com segurança, mas isso não tardará muito.
Talvez algum dia seja possível acrescentar uma espécie de próteses cognitivas e intelectuais ao cérebro – uma espécie de óculos para a mente. Isso obedeceria ao espírito da evolução auditiva e é provavelmente muito mais exeqüível do que tentar reestruturar o cérebro existente. Talvez um dia implantemos cirurgicamente em nossos cérebros pequenos nódulos substituíveis de computador ou terminais de rádio que nos proporcionarão rápido e fluente conhecimento do basco, do urdu, do amárico, do aino, do albaniano, do nu, do hopi, do king ou do delfinês: os valores numéricos da função gama incompleta e dos polinômios de Tschebysheff; ou da história natural do faro dos animais; ou todos os requisitos legais para a posse de ilhas flutuantes; ou a telepatia pelo radio conectando diversos seres humanos, pelo menos temporariamente, em uma espécie de associação simbólica anteriormente desconhecida de nossa espécie.
Mas as aplicações reais de nossos cérebros, sobretudo em relação aos aspectos exclusivamente humanos do neocórtex, já estão em via de serem consumadas. Algumas delas são tão antigas que nos esquecemos de usá-las. Os ambientes didáticos ricos e sem repressão para as crianças representam uma arma educativa notavelmente promissora e bem-sucedida. A linguagem escrita é uma fabulosa invenção que consiste essencialmente em uma máquina simples para o armazenamento e recuperação de informações bastante complexas. A quantidade de informação contida numa grande biblioteca excede sobremaneira a quantidade de informação contida no genoma ou no cérebro humanos. Certamente, a informação não é armazenada com a mesma eficiência que nos sistemas biológicos, mas já é suficientemente compacta, e a criação de microfilmes, microfichas e congêneres melhorou muito as capacidades de armazenamento da informação extra-somática da espécie humana.
A escrita, no entanto, é uma máquina muito simples. Muito mais requintado e infinitamente mais promissor é o armazenamento e processamento de informação extra- somática proporcionado pelo computador eletrônico. Para dar uma idéia do nível de desenvolvimento de tais computadores e de seus programas, basta dizer que hoje eles são capazes de jogar o jogo-da-velha, o xadrez, e o jogo de damas, assim como exercer com razoável perícia o oficio de psicoterapeuta. Existe agora um sistema de computador orientado no sentido de transcrever música clássica ou de qualquer natureza na escrita musical convencional. A quantidade de informação arquivada e a velocidade do processamento pelos computadores são naturalmente prodigiosas.
Um programa de psicoterapia não-dirigida desenvolvido por Joseph Weizenbaum, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, é um bom exemplo da utilidade atual dos programas psiquiátricos em computador (que, a propósito, não são de forma alguma os programas mais difíceis e elaborados que existem). Depois da criação do programa psicoterápico, um psiquiatra (humano) foi encarregado de dialogar com o computador psiquiátrico usando letras minúsculas (através do teclado de uma maquina de escrever e de um consolo interativo). As respostas do computador figuram em letras maiúsculas. O intercâmbio pretendia ser heurístico, mas é possível que se tenha tornado incontrolável do lado humano. A conversa começa com o psiquiatra dizendo:

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