O cérebro e a carroça

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Quando nós três nos encontraremos de novo...? WILLIAM SHAKESPEARE – Macbeth
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O cérebro do peixe não é grande coisa. O peixe possui uma motocorda ou medula espinhas, a qual compartilha com invertebrados ainda inferiores. O peixe primitivo tem também uma pequena saliência na extremidade frontal da medula espinhal, que é seu cérebro. Nos peixes superiores, a saliência é um pouco mais desenvolvida, mas , mesmo assim, não pesa mais que um ou dois gramas. Essa saliência corresponde, nos animais superiores, ao rombencéfalo ou tronco cerebral e ao mesencéfalo. O cérebro dos peixes modernos é constituído principalmente pelo mesencéfalo, com um diminuto prosencéfalo; nos anfíbios e répteis atuais, ocorre exatamente o oposto. E mesmo assim os moldes internos dos fósseis vertebrados mais primitivos que se conhecem revelam que as principais divisões do cérebro moderno (rombencéfalo, mesencéfalo e prosencéfalo, por exemplo) já estavam estabelecidas. Há 500 milhões de anos, nadando nos mares primitivos, viviam criaturas semelhantes a peixes, chamadas ostracodermos e placodermos, cujos cérebros tinham reconhecidamente as mesmas divisões gerais dos nossos. O tamanho relativo e a importância desses componentes, contudo, e mesmo suas funções primitivas, eram certamente muito diferentes das de hoje. Um dos aspectos mais fascinantes da evolução subseqüente do cérebro é a história dos acréscimos sucessivos e da especialização de três camadas adicionais que envolvem a medula espinhal, o rombencéfalo e o mesencéfalo. Após cada etapa evolutiva, as porções mais antigas do cérebro subsistem e precisam ainda ser acomodadas. Mas uma nova camada, com novas funções, foi acrescida. O principal expoente contemporâneo do estudo desse aspecto é Paul MacLean,
diretor do Laboratório de Evolução e Comportamento Cerebral do Instituto Nacional de Saúde Mental. Uma característica fundamental do trabalho de MacLean é que ele encerra muitos animais diferentes, abrangendo desde lagartos até macacos-de-cheiro. Outra é que ele e seus colaboradores estudam cuidadosamente o comportamento social e outros tipos de comportamento desses animais, a fim de aperfeiçoar suas perspectivas de descobrir que parte do cérebro controla que tipo de comportamento.
Os macacos-de-cheiro que possuem certas marcas faciais apresentam uma espécie de ritual ou exibição que executam quando se cumprimentam. Os machos mostram os dentes, sacodem as barras da jaula, emitem um guincho agudo, que é possivelmente aterrorizador para os outros macacos-de-cheiro, e erguem suas pernas para exibir o pênis ereto. Conquanto tal comportamento chegasse às raias da descortesia em muitas agregações sociais humanas contemporâneas, é um ato consideravelmente elaborado e serve para manter as hierarquias de domínio nas comunidades de macacos- de-cheiro. Maclarem descobriu que a lesão de uma pequena parte do cérebro do macaco-
de-cheiro evitará essa exibição, deixando íntegra uma grande variedade de outros comportamentos, inclusive o comportamento sexual e combativo. A parte comprometida pertence à porção mais arcaica do prosencéfalo, parte esta que os seres humanos, assim como outros primatas, compartilham com nossos ancestrais mamíferos e répteis. Nos mamíferos não-primatas e nos répteis, o comportamento ritual equivalente parece ser controlado na mesma parte do cérebro, e leões nesse componente reptiliano podem prejudicar outros tipos de comportamento alem do ritual – por exemplo, caminhar ou correr.
A ligação entre exibição sexual e posição na hierarquia do demônio pode ser frequentemente observada entre os primatas. Entre os macacos japoneses, a classe social é mantida e reforçada por um ritual diário: os machos das castas inferiores adotam a posição sexual submissa característica da fêmea no cio e são, de forma rápida e cerimonial, montados por machos de castas superiores. Essas encenações são ao mesmo tempo comuns e superficiais. Parecem ter pouco conteúdo sexual, mas servem como símbolos de fácil entendimento de quem é quem em uma sociedade complexa.
Em um estudo do comportamento do macaco-de-cheiro, Caspar, o animal dominador na colônia e definitivamente o exibidor mais ativo, nunca foi visto copulando, embora fosse responsável por dois terços da exibição genital na colônia – a maior parte desta dirigida a outros macacos adultos. O fato de Caspar ser altamente motivado a estabelecer domínio, mas pouco motivado a praticar o sexo sugere que, embora essas duas funções utilizem sistemas orgânicos idênticos, são bastante separadas. Estudando essa colônia, os cientistas concluíram: “A exibição genital é, por conseguinte, considerada o sinal social mais efetivo com respeito à hierarquia do grupo. Tem caráter ritual e parece adquirir o significado “Eu sou o chefe”. Origina-se mais provavelmente na atividade sexual, mas é utilizada para a comunicação social e independe da atividade reprodutora. Em outras palavras, a exibição genital é um ritual derivado do comportamento sexual, mas que serve a propósitos sociais e não reprodutoras”.
Em entrevista à televisão em 1976, o animador do programa perguntou a um jogador de futebol profissional se era embaraçoso para os jogadores ficarem juntos no vestiário despidos. Sua resposta imediata: “Nós nos orgulhamos! Embaraço nenhum. É como se estivéssemos dizendo um ao outro, vamos ver o que é que você tem, homem!”.
As conexões neuranatomicas, assim como as comportamentais, entre sexo, agressão e domínio são inferidas em uma série de estudos. Os rituais de acasalamento dos grandes felinos e de muitos outros animais são praticamente indistinguíveis da luta, nas fases iniciais. É comum os gatos domésticos ficarem ronronando (às vezes alto) perversamente, com as garras arranhando o tapete ou a pele humana. O uso do sexo para estabelecer e manter o domínio é por vezes evidente nas praticas humanas heterossexuais e homossexuais (embora não seja, naturalmente o único elemento em tais praticas), assim como na expressão verbal “obscena”. Considere a situação peculiar de que a agressão verbal de duas palavras mais comuns em inglês (fuck yourself) e em outras línguas refere-se a um ato de prazer físico transbordante; a forma inglesa provavelmente deriva do verbo alemão fokken, o que significa “golpear”. Esse estranho uso pode ser compreendido como um equivalente verbal na linguagem simbólica dos macacos, com a palavra inicial “Eu” não expressa, mas compreendida por ambos os parceiros. Essa e muitas expressões semelhantes parecem ser cópulas humanas cerimoniosas. Como veremos mais adiante, tal comportamento provavelmente remonta a épocas muito anteriores aos macacos, há centenas de milhões de anos na escala geológica. A partir de experiências como as realizadas com macacos-de-cheiro, MacLean
concebeu um modelo cativante da estrutura e da evolução cerebral que ele denomina o cérebro trino. “Somos obrigados”, diz ele, “a nos olhar e a olhar o mundo através dos olhos de três mentalidades bastante diferentes, duas das quais carecem do poder da fala”. O cérebro humano, sustenta MacLean, “compreende três computadores biológicos interligados”, cada um com “sua própria inteligência especial, sua própria subjetividade, seu próprio sentido de tempo e espaço, sua própria memória, suas funções motoras e outras”. Cada cérebro corresponde a uma etapa evolutiva importante separada. Os três cérebros são sabidamente distintos, em termos neuranatômicos e funcionais, e contêm distribuições acentuadamente diferentes dos neuroquímicos dopamina e colinesterase.
Na parte mais arcaica do cérebro situam-se a medula espinhal, o bulbo e a ponto, que fazem parte do rombencéfalo, e o mesencéfalo. MacLean chama esta combinação de medula espinhal, rombencéfalo e mesencéfalo de chassi neural. Ela contém o mecanismo neural básico para a reprodução e a autopreservação, abrangendo a regulação cardíaca, a circulação sanguínea e a respiração. No peixe ou no anfíbio, é quase todo o cérebro existente. Mas um réptil ou um animal superior destituído de seu prosencéfalo é, de acordo com MacLean, “tão imóvel e sem objetivo como um veiculo movendo-se ao acaso sem motorista”.
Realmente, a epilepsia do tipo grande mal pode, acredito, ser descrita como uma doença na qual todos os condutores cognitivos estão fora de ação, em virtude de uma espécie de tempestade elétrica no cérebro, e a vítima fica momentaneamente sem qualquer comando, a não ser o exercido por seu chassi neural. Esse é um profundo distúrbio, que faz regredir temporariamente a vítima a várias centenas de milhões de anos. Os antigos gregos, cujo nome para a doença ainda usamos, reconheceram sua natureza profunda e a consideravam infligida pelos deuses.
MacLean distinguiu três espécies de regentes do chassi neural. O mais arcaico deles circunda o mesencéfalo (e é constituído, em sua maior parte, pelo que os neuranatomistas chamam de estria olfativa, corpo estriado e globo pálido). Compartilhamos isso com os outros mamíferos e répteis. Provavelmente seu desenvolvimento se processou há várias centenas de milhos de anos. MacLean o denominou complexo reptiliano ou complexo-R. Circundando o complexo-R encontra- se o sistema límbico, assim chamado porque se limita com o cérebro subjacente. (Em inglês, os membros são chamados de limbs porque têm situação periférica em relação ao resto do corpo). Temos o sistema límbico em comum com outros mamíferos, mas o mesmo não ocorre, em sua elaboração total, com os répteis. Provavelmente ele se desenvolveu há mais de 150 milhões de anos. Finalmente, envolvendo o restante do cérebro, e evidentemente a aquisição evolutiva mais recente, temos o neocórtex. À semelhança dos mamíferos superiores e de outros primatas, os seres humanos possuem um neocórtex relativamente maciço. Ele se torna progressivamente mais desenvolvido nos mamíferos mais evoluídos. O neocórtex mais elaborado é o nosso (e o dos golfinhos e baleis). Provavelmente surgiu há várias dezenas de milhões de anos, mas seu desenvolvimento foi grandemente acelerado há alguns milhões de anos, quando o homem apareceu. Uma representação esquemática do cérebro humano é apresentada na figura anterior e, na próxima, uma comparação do sistema límbico com o neocórtex em três mamíferos contemporâneos. O conceito do cérebro trino concebido independentemente de estudos das proporções entre massa cerebral e massa corporal do capitulo anterior está com inteira concordância com as conclusões de que a emergência de mamíferos e primatas (principalmente seres humanos) se fez acompanhar de grandes surtos de evolução cerebral.
É muito difícil evoluir alterando a profunda trama da vida: qualquer mudança que haja é provavelmente letal. Transformações fundamentais podem, no entanto, ser realizadas pelo acréscimo de novos sistemas sobre as estruturas antigas. Esta é a retrospectiva de uma doutrina que foi chamada recapitulação por Ernst Haeckel, um anatomista alemão do século XIX, e que atravessou vários ciclos de aceitação e rejeição por parte dos eruditos. Haeckel sustentava que, em seu desenvolvimento embriológico, qualquer animal tende a repetir ou recaem seu desenvolvimento embriológico, qualquer animal tente a repetir ou recapitular a seqüência que seus ancestrais seguiram durante a evolução. E, realmente, no desenvolvimento humano intra-uterino, percorremos etapas muito semelhantes aos peixes, répteis e mamíferos não-primatas antes de nos tornarmos seres reconhecidamente humanos. Na fase de peixe, existem até fendas branquiais que são inteiramente inúteis para o embrião, uma vez que ele é nutrido através do cordão umbilical, mas que constituem uma necessidade para a embriologia humana: considerando-se que as brânquias eram vitais para nossos ancestrais, passamos por uma fase branquial até atingirmos a forma humana. O cérebro do feto também se desenvolve de dentro para fora, e, em linhas gerais, percorre a seqüência: chassi neural, complexo- R, sistemas límbico e neocórtex.
A razão da recapitulação pode ser compreendida da seguinte forma: a seleção natural age somente sobre os indivíduos, não sobre a espécie, e pouco sobre óvulos ou fetos. Portanto, a transformação evolutiva mais tardia se dá após o nascimento. O feto pode apresentar características (tais como fendas branquiais em mamíferos) que são inteiramente incapazes de se adaptar após o nascimento, mas, contanto que não causem problemas sérios para o feto e sejam perdidas antas do nascimento, podem ser conservadas. Nossas fendas branquiais representam vestígios não de peixes antigos, mas de antigos embriões de peixes. Muitos sistemas orgânicos se desenvolvem não pelo acréscimo e pela preservação, mas pela modificação de sistemas mais primitivos, como é o caso da modificação de barbatanas para pernas e de pernas para nadadeiras ou asas; de pés para mãos; ou de glândulas sebáceas para glândulas mamarias; ou de arcos branquiais para ossículos do ouvido; ou de escamas para dentes de tubarão. Por conseguinte, a evolução por acréscimo e a preservação funcional da estrutura pré- existente devem ocorrer por uma das duas razoes seguintes – ou a função antiga é imprescindível, assim como a nova, ou não há meio de evitar o antigo sistema que é compatível com a sobrevivência.
Na natureza, existem muitos outros exemplos dessa espécie de desenvolvimento evolutivo. Tomando-se um caso aleatório, consideremos o motivo pelo qual as plantas são verdes. A fotossíntese das plantas verdes utiliza a luz nas faixas vermelha e violeta do espectro solar para degradar a água, elaborar carboidratos e realizar outras funções peculiares às plantas. Ocorre que o Sol emite mais luz nas faixas amarela e verde do espectro do que na vermelha ou na violeta. As plantas possuidoras de clorofila como seu único pigmento fotossintético rejeitam a luz no ponto onde ela é mais abundante. Muitas plantas parecem ter “percebido” isso tardiamente e fizeram adaptações adequadas. Criaram-se outros pigmentos, que refletem a luz vermelha e absorvem a luz amarela e verde, tais como os carotenóides e ficobilinas. Muito bem. Mas será que as plantas possuidoras de novos pigmentos fotossintéticos abandonaram a clorofila? A resposta é não. A figura mostra a fabrica fotossintética de uma alga vermelha. As estrias concobilinas contém a clorofila e as pequenas esferas aninhadas ente essas estrias contém as ficobilinas, que dão à alga vermelha sua cor característica. Por uma questão de conservação, essas plantas transferem a energia que adquirem da luz solar verde e amarela para a clorofila que, muito embora não tenha absorvido a luz, é ainda necessária como mediadora ente a luz e a química em toda fotossíntese vegetal. A natureza não poderia eliminar a clorofila e substituí-la por pigmentos melhores; a clorofila está profundamente tecida na trama da vida. As plantas possuidoras de pigmentos acessórios são certamente diferentes. São mais eficientes. Mas lá, ainda que trabalhando com menor responsabilidade, no âmago do processo fotossintético, esta a clorofila. Acredito que a evolução do cérebro tenha ocorrido de forma análoga. As partes profundas e arcaicas ainda funcionam.

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