Distopia

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O mormaço batia no rosto do atirador que se encontrava na mesma posição à quase dois dias. Seu companheiro, Lucas, se lembrava o nome corretamente, o tinha abandonado naquela manhã após uma crise de náuseas e dores estomacais, sintomas aparentemente causados após um longo período de tempo ao lado do Tenente Mendel, que naquela vigia de 48 horas fazia papel de atirador principal. Apesar de aparentar 20 anos, o mais novo Tenente do Complexo, tinha 38 anos em seu tempo de vida. Para muitos, mesmo com seu título recém adquirido, Tenente Mendel, ou Ian para aqueles que não ligavam para seu cargo, era apenas um jovem de boa aparência, com feições duras e uma péssima atitude ao lidar com seus homens.

              O Tenente encarava sua atividade com a maior seriedade possível. Seus olhos castanhos se mantinham focados, firmes, enquanto através da mira observava o homem, que à quase duas horas vagava pelas ruas da cidade abandonada, andando sem realmente ir para lugar algum.

            O alto prédio em frente à antiga prefeitura da cidade, que fora abandonada à 20 anos quando o vírus havia matado a muitos e espantando o restante da população, mantinha Ian, e qualquer outro atirador em vigia, protegido de possíveis ataques. Com isso, o  edifício repleto de apartamentos abandonados, reflexos de uma vida distante, permitia que toda a cidade fosse visível de seu topo, lhes dando uma vantagem sobre o inimigo.

            ― Dê a meia volta ― Ian murmurou sem tirar os olhos do homem ― Não me faça matar hoje.

            Pediu ele, sentindo o peso de suas palavras atingirem o silêncio.

            O andarilho, um homem de 40 anos, que se encontrava naquele momento sem grupo, andava pelas ruas da cidade sem saber para onde ir. Seu último companheiro fora morto por saqueadores à quase dez dias , e enquanto sua água e comida chegavam ao fim, seu desejo de viver, ou esperança de encontrar alguém vivo, estavam igualmente se esgotado. Apesar de dias terem se passado, ainda era capaz de ouvir as últimas palavras de seu amigo, retumbando em sua cabeça, o guiando para seu destino final - Esse é um mundo cruel, você precisa lutar para sobreviver, caso contrário essa vida irá o engolir - e por mais que desejasse, aquelas palavras não o abandonavam, ao contrário, apenas se fixavam ainda mais em seu cérebro.

             No topo do prédio, o dedo do atirador comichava com a ideia de matar o homem. Matar não era algo que gostava, mas se tornara natural, quando à quase 5 anos o Complexo havia surgido em seu caminho. Ali, matar, atirar e aniquilar o inimigo era seu trabalho, diferente da sua antiga vida, na qual a ideia de assassinar alguém lhe parecia inconcebível. Contudo,  sua vida anterior já não existia mais,  aquela na qual  o mundo era divido por fronteiras e não muros,  o povo falava mais línguas além da língua comum,  a Ordem não possuía Cidades Fortes a cada esquina e a vida não se resumia apenas em sobreviver e ver o novo mundo prosperar, aquele do qual os remanescentes não pertenciam. O mundo já não era tão simples, o poder havia dominado e, enquanto os grandes protegiam suas famílias do vírus, o resto, aqueles poucos pobres que sobreviveram após a morte de muitos, lutavam dia após dia por suas vidas.

         Ian, por muito tempo optara pela neutralidade naquela guerra, no entanto, se afastar da dor e das mortes tinha se tornado impossível, especialmente quando  era parte fundamental da mesma. Após anos a barreira que separava o novo mundo e mundo dos remanescentes parecia estar se quebrando, e o ataque era quase eminente.

          O rádio anexado a seu uniforme calou suas divagações, e Ian precisou admitir para si mesmo que o silêncio estava começando a esgotá-lo.

         ― Tenente, Mendel.

          Chamou o rádio.

         ― Estou aqui, câmbio.

A Solução FinalOnde histórias criam vida. Descubra agora