PARTE I - RAUL (Primavera/Verão de 2016)

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CAPÍTULO 1

Um Pedido Apenas

Às oito horas da manhã a temperatura já chegara aos 30oC, a tarde prometia ser insuportável e asfixiante. Janeiro começou com chuvas bíblicas e temperaturas infernais. Entre um e outro, o mormaço umbralino. Praguejar contra chuva ou maldizer o calor não parecia recomendável, sob pena de irritar quem quer que estivesse comandando o clima. Impossível escolher entre um e outro, assim como tem sido difícil subsistir. O verão viera com plena potência, muito calor e a cruel dificuldade de escolha, de decisão. A população do Centro-Oeste brasileiro se dividia em orações, uns pediam a chuva, outros imploravam pelo sol. Enfim, um verão apocalíptico, digno de figurar nos almanaques climatológicos.

Naquele dia, o calor exagerado preocupou Andrea, nem chovia e tampouco o sol brilhava pleno – estavam estacionados na perigosa região entre dois polos igualmente temidos. Poderia parecer confortável, mas um passo em falso ou uma palavra mal dita seriam capazes de lançá-los a um dos dois extremos, sem piedade. Na tentativa de driblar os caprichos do tempo, ela abriu as cortinas e a janela do quarto, fazendo um convite formal para a brisa relutante, na esperança dela, enfim, decidir fazer uma visita e renovar a atmosfera infecta do cômodo malcheiroso.

                  O ar quente e úmido fazia aumentar ainda mais os odores que a noite havia concentrado no ambiente. Uma mistura nada harmônica de urina, suor e o indescritível cheiro do sofrimento humano, nem azedo e nem rançoso, um odor próprio que ela, como enfermeira, conhecia bem. Há aqueles que diriam que no fundo, mesclado entre todos aqueles odores desagradáveis, ou talvez resultado da mistura de todos eles, existia uma nota marcante de algum ingrediente... doce! Sim, olfatos mais apurados, ou almas mais sensíveis, poderiam detectar um toque adocicado, mas nem por isso agradável.

                  Apenas a claridade e o calor aceitaram o convite para entrar. Até as forças mais primitivas da natureza pareciam se recusar a frequentar o ambiente. Não houve refresco, nada traria alívio. Mesmo assim ela manteve a janela aberta, esperançosa de convencer o calor, o abafamento e os odores a educadamente se retirarem do recinto. O homem sobre a cama estava desperto, magro e pálido como um cadáver fresco. Desde a madrugada ele tentava encontrar uma forma de convencer Andrea. Assim como o ambiente, ele também se situava a meio caminho entre a danação úmida ou o calor escaldante. Enquanto ela insistia em melhorar o ambiente carregado, ele procurava a melhor forma de convencê-la a lhe dar a escuridão, o descanso que tanto ansiava.

                  – Bom dia, como passou a noite? – Há meses repetia religiosamente, como se fosse um mantra.

                  – Na verdade foi ela quem passou por mim, me assombrando, trazendo todos os meus fantasmas para rirem da minha desgraça.

                  – O senhor não conseguiu dormir de novo? Precisamos pedir um novo remedinho para o Dr. Sérgio.

                   – Eu não quero dormir, quero morrer e você sabe disso. Não quero mais conviver com esses fantasmas. Quando não aparecem em pensamento, aparecem nos meus sonhos, noite após noite. Para que dormir?

                  – Isso não está certo, o senhor precisa descansar.

                  – Por favor, não finja que está tudo normal. Você sabe muito bem o que eu quero, não me faça pedir novamente. Se pudesse, me ajoelhava implorando.

                  – Não vamos começar com isso de novo. Hoje é domingo, seu filho e seu netinho vem de longe para ver o senhor. Vamos dar um jeito nesse quarto, o menino ficou assustado na última vez que esteve aqui. As crianças se assustam facilmente e o senhor deve amenizar essa situação. Ele adora o senhor.

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