Fazia tempo que Andrea não dormia tão bem. Estava renovada. Antes de ir ver Raul, preparou o café, arrumou numa bandeja, colocou uma fatia de melão, iogurte e suco de laranja, além da xícara de café. Quando entrou no quarto teve um choque ao ver o estado em que estava Raul.
– Meu Deus, o que aconteceu? O senhor está pálido como uma vela.
– Estou muito fraco, tive diarreia e cólica a noite toda. Achei que fosse morrer. Tentei te chamar, mas minha voz estava tão fraca que acho que você não ouviu.
– Acho melhor voltar a dormir aqui com o senhor.
– Acho que não é necessário.
– Podemos comprar uma campainha e deixar ao seu alcance. Com ela é impossível não acordar.
– Acho melhor, não quero te desgastar demais dormindo aqui. Você precisa descansar bem, sei que deve ser difícil seu trabalho.
– Eu estou acostumada. O que será que te fez mal? – Ela sabia, mas ficou verdadeiramente preocupada com o estado de Raul.
– Não sei. Só sei que nunca senti tanta dor de barriga.
– Vou dar um banho no senhor. Depois o senhor come direito.
Depois do banho tomado e do café da manhã, Raul já estava mais corado.
– Pra mim a pior parte é não ser capaz de me limpar e tomar banho sozinho. Todo dia é um tormento.
– Não se preocupe, faz parte do meu ofício.
– Nem sempre fui assim tão enrugado e flácido. Estou parecendo um maracujá embolorado. Pegue uma caixa de fotos ali na terceira gaveta da cômoda, por favor.
Andrea pegou a caixa e colocou sobre as pernas de Raul. Era uma caixa com fotos, centenas delas. Raul vasculhou a caixa e por baixo daquele amontoado de recordações tinha uma foto maior, já gasta pelo tempo. Era essa foto que Raul queria encontrar.
– Está aqui. Veja, eu não era de se jogar fora. – Entregou a foto para Andrea. – Essa foto foi tirada pouco antes de eu me mudar pra Cinco Morros.
Andrea pegou a foto, virou-a e quando olhou sentiu as pernas bambearem. Realmente ele era muito bonito, atlético. Mas vê-lo com a aparência que tinha na época em que abusou do menino, não lhe fez nada bem. Era como ficar cara a cara com outro homem, não aquele adoentado e sensível, mas um monstro capaz de qualquer coisa para saciar seus desejos. Demorou um pouco para se restabelecer.
– O Felipe se parece muito com o senhor. – Tentou desviar a atenção do olhar penetrante no retrato, ainda vivo apesar do amarelado da foto.
– É verdade.
– Acho que o senhor deveria emoldurar essa foto, apesar de velha, ela é muito bonita. O senhor foi jogador profissional? – Referindo-se à camisa do São Paulo Futebol Clube que ele vestia orgulhoso.
– Quase. Cheguei a treinar no time de base. Estava indo muito bem, mas tive que abandonar esse sonho.
– Mas porquê? Que pena.
Raul pensou um pouco, baixou os olhos.
– Um dos integrantes da comissão técnica me assediou e como ele viu que não ia conseguir nada, passou a me barrar nos jogos e treinamentos.
– Que canalhice, isso deve ser muito comum.
– Mais do que você imagina.
– E porque o senhor não tentou em outro time?
VOCÊ ESTÁ LENDO
COISAS DE MENINO
Não FicçãoAndrea é uma enfermeira competente e dedicada. Especializada em pacientes terminais, está acostumada a virar confidente. Mas nada a preparou para ouvir as confissões de Raul, um homem respeitado na pequena Cinco Morros, mas que há 30 anos abusou de...