Capítulo 3 - Três Noites de Agosto

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Andrea se permitiu demorar no banho, o cheiro de podridão parecia não abandonar seu corpo e seu corpo parecia não estar mais sob seu comando, estava entregue, vencido, possuído por alguma entidade desconhecida. Sabonete, shampoo, colônia, nada conseguiu limpar, mais que o corpo, seus sentimentos. Continuou parada, deixando a água cair sobre sua nuca e escorrer pelo seu corpo. Os olhos mantinham-se fixos no chão e os pensamentos bem distantes do banheiro, completamente enxutos, ressecados. Suas lágrimas misturavam-se à água clorada e ambas escorriam abundantes em movimentos circulares pelo ralo entre seus pés, um redemoinho de emoções sob seu olhar imóvel. O rosto de Raul se projetava no ponto onde seus olhos se fixavam, conseguia ver com perfeição o movimento de sua boca pronunciando a confissão sórdida, seus olhos esperando por perdão, por compreensão. Talvez dele mesmo.

Será possível ele achar que o avanço da doença era uma garantia irrevogável de perdão para, então, conquistar a paz de espírito? Esperava, em sã consciência, que alguém abrandasse seu pecado? Não era um pecado simplesmente, era um crime. Foi uma confissão desesperada e tardia que só surgira com a iminência da morte. Como ele havia convivido com isso durante toda sua vida? Provavelmente estava num canto qualquer de sua memória, tão escondida e esquecida que não alcançava mais os sentidos. Isso era comum, ela sabia. Passa-se a vida toda fazendo todo tipo de coisas e guardamos para o final o arrependimento. Reconhecer um erro, um crime, um pecado no fim da vida tem algum valor? Talvez tenha, mas para quem nunca havia sido tocado por essa verdade, como Carolina, talvez fosse preciso algumas décadas para colocar na gaveta do esquecimento.

Andrea não era religiosa, mas acreditava no poder do perdão. Existia perdão para o que Raul confessara? Qual a abrangência do perdão? Quais seus limites? A família e amigos o perdoariam se soubessem? Ela conseguiria perdoar, ou pelo menos continuar cuidando de um criminoso? É regra da justiça que todos têm direito à defesa. Mas nem sempre é fácil e simples seguir essa regra fora do âmbito jurídico. Sabia que muita coisa mudaria se decidisse ficar e isso não lhe agradava.

Depois de quase quarenta minutos sob o chuveiro, Andrea fez com que a toalha, ao menos, abraçasse seu corpo, amarrou outra na cabeça e se colocou em frente ao espelho. Seus olhos estavam cansados, as olheiras, antes sutis, se aprofundaram deixando os ossos saltados e uma mancha violeta ao redor de cada olho. Não foram os constantes plantões e as longas noites de vigília, pareciam envelhecidos, opacos. Era como se toda a maratona de trabalho dos últimos anos tivesse surtido efeito somente agora. Mas ela sabia, não eram olheiras de esgotamento físico, sentia-se esvaída de qualquer energia interior, primeiro pelo apego e pela morte de D. Lúcia, agora pelo desprezo por Raul. Além da saudade que teimava em não a deixar. Saudades de sua mãe, mas acima de tudo de seu falecido marido. Essa lhe queimava as entranhas.

Andrea sempre fora uma mulher bonita. Mais que bonita, ela era elegante, de gestos sutis e refinados. Uma elegância simples, muito mais pela sua postura altiva do que pelas roupas que usava. Justamente essa beleza e elegância, anos antes, haviam seduzido Piero, um rico empresário de Milão. Seu príncipe italiano, como sempre o chamava.

O casal viveu um verdadeiro romance de cinema. Durante seis anos Andrea havia sido a pessoa mais feliz e realizada que já habitara a Terra. Piero nunca a decepcionara. Era bonito, como todo príncipe italiano deve ser, também era muito carismático e um incansável romântico. Nem a impossibilidade de engravidar abalou o mundo de sonhos do casal. Nada foi empecilho para ele, tudo foi tomado como apenas obstáculos obrigatórios em todo conto de fadas.

Andrea e Piero planejavam fazer uma adoção. Andrea fazia questão de que fosse uma criança brasileira, foi sua única exigência. Quando chegou a notícia de que um casal de irmãos estava disponível para adoção, o casal vibrou e logo se candidataram. A menina tinha cinco anos e o garoto, três. Depois de vencerem a longa burocracia brasileira, viajaram para o Recife para terem um contato inicial com as crianças. No mesmo dia em que chegaram, passeavam pela orla da praia de Boa Viagem quando dois menores os abordaram.

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