24 de abril de 1928

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Bremen, Alemanha

24 de abril de 1928

A música ressoava por todo o local, cujas paredes estavam decoradas por quadros bastante requintados. As pessoas presentes apreciavam cada obra de arte, enquanto alegremente conversavam entre si, mantendo sempre uma postura elegante. Os empregados andavam pela sala, servindo os copos com champanhe, para quem quisesse desfrutar plenamente do ambiente. Margalit, que encontrava-se a apreciar um dos quadros, fecha quase que instantaneamente os olhos, assim que a orquestra começa a tocar Moonlight Sonata, uma maravilhosa composição de Beethoven, e sendo ela uma amante de música clássica, não conseguiu conter a sua felicidade ao ouvir as primeiras notas de uma das suas composições favoritas.

- Bastante bonita – uma voz grave e rouca desperta a sua atenção. Lentamente, Margalit abre os olhos e vira a cabeça ligeiramente para a esquerda para que a sua visão alcançasse o sujeito que se pronunciara – A música, quero eu dizer.

- Sem dúvida – limitou-se a responder. O seu olhar permaneceu fixo no sujeito, até ele finalmente acabar com aquele silêncio constrangedor, ou talvez, porque a sua expressão desvendou a sua curiosidade em conhecer o homem, dono de cabelos loiros rebeldes e olhos cuja cor ainda não conseguira determinar.

- Wadler Bercksmann, prazer – ele estende a mão e Margalit, por sua vez, aperta-a como forma de cumprimento.

- Margalit Schwartz – um olhar curioso surge no rosto de Bercksmann.

- Schwartz, tal como o autor de algumas destas excelentes pinturas?

- Sou filha dele – uma resposta curta e direta. Nenhum dos dois deu continuidade à conversa. Ambos permaneceram em silêncio a observar a tela preenchida por um misto de tons de cinza, os quais realçavam a figura de um soldado abatido.

- Esta pintura transmite exatamente o período que vivemos – comenta, sem desviar o olhar da mesma – A última guerra deixou muitas pessoas devastadas e mesmo com as tentativas da população em geral para se erguer novamente, as consequências continuam lá, mesmo que escondidas. No fundo, este quadro retrata as memórias de um tempo cheio de sofrimento. Agora simplesmente encontramo-nos inseridos numa sociedade entorpecida pela guerra.

- Concordo plenamente – discretamente, ela observava - ao invés da pintura - cada traço do rosto do homem ao seu lado. Tudo nele lhe parecia intrigante e fascinante e ela ainda questionava a razão daquele sujeito estar ali a conversar consigo – Talvez o meu pai tenha pensado nesse ponto de vista quando pintou este quadro, até porque ele participou na guerra. Geralmente ele nunca partilha o significado por de trás de cada obra sua, dando-nos liberdade para interpretar à nossa maneira.

- Um homem tem que manter os seus segredos – ambos riem-se – Espero não me intrometer, mas... Após a guerra, o seu pai sofreu...

- Não. Apesar de no início os pesadelos serem constantes, acabou por superar – responde, antes que Wadler terminasse a sua pergunta.

Todos tocavam sempre no mesmo assunto, todavia, ela não se aborrecia por causa disso, pois era normal surgir curiosidade quanto a isso, sendo que pelo relato de outros sobreviventes, muitos ainda sofriam com as experiências traumáticas. Contudo, o verdadeiro desmoronamento aconteceu com a sua família e não se deveu inteiramente à guerra, ainda que os pais tentassem cobrir o que realmente se passava. Obviamente, a tempestade de 1914 afetou todas as pessoas, sobretudo aqueles que assistiram em primeira mão ao espetáculo mortífero no palco europeu. Era bastante visível a diferença de atitudes do pai, que refugiou-se cada vez mais no trabalho e na realização das suas obras, ignorando por completo as necessidades da família. Esta falta de consideração pela família levou a sua mãe a arrastá-la consigo para a sua terra natal, de modo a deixarem o seu pai a organizar as ideias e conseguisse curar as feridas presentes no seu psicológico. Porém, Margalit sabia que aquela era mais uma desculpa para esconder a infelicidade do seu casamento, arranjado pelos pais de ambos quando ainda eram muito jovens. Se Margalit não fosse astuciosa o suficiente, talvez declarasse que  os pais já foram, em tempos, felizes. Mais tarde, ela compreendeu que os dois apenas se habituaram à presença um do outro, partilhando o que tinham em comum, sendo, neste caso, as suas crenças religiosas e a sua filha.

Além disso, grande parte da guerra ele esteve nas tendas a socorrer os soldados feridos. Foram poucas as vezes que ele participou diretamente.

- A guerra desmoronou tudo – ele suspira – O meu tio morreu em batalha, porém nunca houve nenhuma evidência, já que o corpo nunca foi encontrado. O meu pai... Bem, ele chegou vivo a casa, mas o trauma sucumbiu-lhe que... Pôs fim à própria vida.

- Lamento muito... - ela nunca fora excelente em manter conversas e agora com uma revelação mórbida pior ainda. Rapidamente ela tenta buscar as melhores palavras para dizer, mas nada lhe veio à mente – Gostaria de poder dizer algo para lhe consolar, porém não sou a melhor pessoa para o fazer – afirmou sincera.

- Nem é a sua obrigação para tal, além disso nunca fui uma pessoa ligada à família – ele encolhe os ombros, como se desse de entender que não se importasse. Mas ele importava-se e Margalit conseguia ver isso nos seus olhos esverdeados – o contacto visual já lhe possibilitou conhecer a natureza da cor dos seus olhos – que se inundavam numa certa tristeza ao falar no assunto – Assim que soubemos da notícia do seu... Acidente... A minha mãe, com a ajuda do meu tio, teve de assumir imediatamente os negócios da família tutelados por ele até que eu atingisse a idade certa para liderá-los. Assim que isso aconteceu, afirmei logo o senso de independência e controlo, que desde miúdo pretendia alcançar e sempre me foi restringido.

- Um homem com espírito rebelde, huh? – um sorriso radiante, e charmoso, na opinião dela, aparece no rosto de Wadler.

- Claro que não... – ele tenta não encarar o rosto de Margalit que encontrava-se com as sobrancelhas arqueadas como se soubesse a verdade – Talvez um pouco.

- Bem, me pareceu ...

- O que me denunciou? – pergunta. Margalit sorri e vira o seu corpo, de modo a ficar frente a frente ao corpo alto de Wadler.

- Para quê perguntar se já sabe a resposta? – nesta altura ambos os seus olhares se penetravam um no outro, como se estivessem a comunicar.

- Vejo que é uma mulher perspicaz – ele avança um passo e a este ponto as suas respirações misturavam-se, tornando o contacto visual mais íntimo. Após uns longos segundos a encararem-se fixamente, Margalit aproxima-se do seu ouvido.

- Apenas oiço os rumores – sussurra – Além disso, são muitas mulheres que conheceram o lado rebelde de Wadler Bercksmann, o homem que contraria tudo e todos, priorizando sempre os seus desejos e vontades. Ou estarei eu a mentir? – novamente o sorriso enigmático e típico de Margalit surge no seu rosto.

-Devo presumir que foi uma delas? – questionou confuso, tentando recordar-se do seu rosto algures no seu passado e, quem sabe, num tempo mais atual, ocultado pelas altas doses de álcool.

- Se fosse uma delas, certamente lembraria-se de mim – dito isto, Margalit caminhou na direção contrária, deixando o homem sozinho com os seus pensamentos.

Wadler sentiu uma enorme curiosidade em conhecer aquela jovem mulher misteriosa, cujos olhos castanhos quase lhe desvendaram o que se encontrava no seu íntimo. De certa forma, ele sabia que ambos possuíam uma conexão inexplicável, a qual ele pretendia descobrir. 

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