Capítulo 2

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Ícaro ficou deitado por um momento enquanto seu coração batia fortemente. O suor descia-lhe a testa e era absorvido pela fronha do travesseiro encardido. A respiração ruidosa ia se afrouxando lentamente. Mais um, se referindo aos pesadelos que, nas duas últimas semanas, se tornaram mais frequentes. Esfregou o canto interno dos olhos com a ponta do dedo indicador e o polegar e jogou o cabelo para trás.

Sentia-se vivo pelo simples fato de poder rever Sarah, pelo menos até o momento em que abria os olhos para o mundo real e se encontrava sozinho na cama de casal. Nesse momento, sentia toda sua vitalidade sugada pela solidão.

A cama é tão grande.

Ícaro aguçou os ouvidos a fim de saber se a filha já estava acordada. Um esforço relativamente inútil levando em consideração o silêncio com o qual Cristie se mantinha a maior parte do tempo. Por vezes, o homem se sentia o único morador da casa.

Ficou ligeiramente tonto quando olhou para o lado, onde estava a cadeira velha de jantar que ele usava de criado mudo. No assento rasgado estava pousado um rádio relógio que marcava:

14:27 – SEX— 24/11/89

Merda.

Ícaro levantou-se da cama de um só pulo. Havia uma seringa e uma colher de metal manchada no chão próxima a cama. O primeiro recolheu e guardou no bolso interno de um sobretudo surrado que estava enrolado e jogado no canto do quarto, o segundo simplesmente chutou para debaixo da cama. Destrancou sua porta e saiu. Passou pelas paredes estufadas e manchadas de mofo do corredor até chegar à cozinha e se deparar com Cristie sentada à mesa, com a cabeça levemente tombada. Virou o pescoço para encarar o pai e voltou para a posição original.

— Cristie – disse com a voz grossa de sono

— Oi, papai. – respondeu a menina sem emoção em um sussurro.

— Filha, desculpa. Papai teve que... – Sem pensar em alguma desculpa, prosseguiu – Está com fome? Vou preparar alguma coisa.

O homem moveu-se pelo chão engordurado, passando pela pia, onde algumas pequenas larvas cresciam na pilha de pratos sujos. Abriu a porta da geladeira e o cheiro frio de podridão se espalhou pelo ar.

Leite, podre. Queijo, podre. Resto de Pizza, podre.

Merda.

O homem olhou para a filha com seu olhar mais piedoso.

— Que tal uma comida chinesa?

— Eu não gosto.

— Como não? Você comia com sua mãe.

— Eu ia pra fazer companhia.

— Mas você comia.

— Ah, pai, eu não quero.

Ícaro pensou em outra alternativa, digerindo o fato de que o problema não era o maldito yakissoba.

— McDonald's?

— Pode ser.

— Volto em um minuto, pequena! – Ícaro abraçou a filha, que não retribuiu, pegou a carteira, calçou os chinelos e saiu para a rua.

Correu o mais rápido que pôde pelos próximos oitocentos metros. Ao passar pela porta dupla de vidro, deu-se conta que várias pessoas o encaravam com olhar incrédulo. Ainda usava o pijama rasgado. Contando que tampe o meu saco, ninguém pode me processar. O atendente o encarou assustado enquanto anotava o pedido. Ícaro pagou, pegou as sacolas de papel e disparou de volta para casa, com uma única causa em mente, consertar a mancada com Cristie.

A Sereia de Santa MurgenOnde histórias criam vida. Descubra agora