Capítulo 3

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Eu te amo, filha. Suas palavras ecoavam na cabeça mais fortes enquanto se aproximava do seu destino. O que pensaria Cristie se descobrisse? É melhor não pensar nisso.

Ícaro pagou o táxi com a nota de maior valor de sua carteira, pensando no troco, que facilitaria as coisas lá dentro. Ao abrir a porta do carro notou que sua mão tremia levemente. Fato que o distraiu e o impediu de responder ao 'boa noite' do motorista. Estava no bairro Libertador, que ficava cerca de seis quilômetros da casa do homem. Os muros altos e pichados das ruas costumavam dar uma sensação sufocante a Ícaro. Precisava caminhar com cuidado até à casa a sua frente, pois os buracos na calçada poderiam render, no mínimo, um tornozelo torcido.

O frio beijou a nuca de Ícaro e ele subiu a gola de seu sobretudo. Levantou os olhos para o único raio de luz à sua volta. O letreiro de lâmpadas vermelhas logo acima do telhado da casa. Se as letras não estivessem acesas, a construção se passaria por abandonada facilmente. A palavra 'Tull 's' flutuava acima da casa. Ícaro sabia que a ausência de uma das letras queimadas do 'Tully's' não fazia diferença. Mas nunca deixava de olhar ao seu redor quando ia lá. Olhava os bêbados do lado de fora com garrafas na mão, olhava a tinta encardida de musgo nas paredes que pintavam o ambiente com a mais legítima degradação. Não queria ser surpreendido por algum bandido ou assassino. Ou por algum sentimento de culpa, embora fosse inevitável.

Deu alguns passos em direção à porta de madeira empenada pela umidade e alguns dos homens o encaravam enquanto passava por eles. Procurava não olhar para eles, não estava em busca de confusão. A fumaça de fumo causou uma leve tontura em Ícaro quando passou pela porta, não que fosse o suficiente para disfarçar o fedor de mijo e mofo do lugar. Ícaro sentia o chão ranger em contato com seus pés, embora fosse impossível escutar debaixo do barulho que se fazia lá dentro. Nove mesas estavam espalhadas no salão. Homens jogavam, bebiam e xingavam. Do outro lado do salão fumegante havia um balcão em formato de ferradura, ao lado de uma jukebox que, neste momento, tocava Three Cigarettes in an Ashtray. As notas mais altas da voz de Patsy Cline eram distorcidas por um dos alto-falantes estourado.

Uma mulher baixa e morena virou-se para ver quem acabara de entrar e, com um sorriso, aproximou-se a passos largos, fazendo sua minissaia subir pela coxa.

— Oi, querido! Achei que não viria hoje! – a voz da mulher era macia e leve, contrastando com a maquiagem forte em seu rosto.

— Ei, Tiffany.

— Qual a boa de hoje?

— Ah, você sabe. Jogar um pouco, esfriar a cabeça...

— Dia ruim no trabalho?

— Não precisa se preocupar. – A ausência de assunto entre os dois possibilitou a Ícaro passar os olhos ao redor, onde as cartas e seus naipes estampavam a pelúcia verde e rasgada das mesas. As cadeiras bambeavam toda vez que alguém sentava ou se levantava. As mais de cinquenta vozes se misturavam em um eco interminável.

— Caras novas aqui, não? – Ícaro deu uma queixada no ar, indicando algumas pessoas.

— Elas vão e vem. Cada uma com seus motivos, não?

— É, entendo. Vou ali tomar alguma coisa. A gente se fala depois.

Depois de acenar com a cabeça, Ícaro atravessou o salão mal iluminado e sentou em uma banqueta enferrujada pregada ao chão, na frente do balcão.

— Boa noite, Joseph.

— Como vai, Ícaro? – disse o outro homem com um cigarro pendendo nos lábios.

— Tudo bem. Serve uma dose dupla de uísque pra mim.— contou o troco do taxi – E um Camel desses aí. – disse olhando para o cigarro na boca de Joseph.

A Sereia de Santa MurgenOnde histórias criam vida. Descubra agora