Capítulo 1

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Capítulo 1 Arrependo-me de não ter prestado atenção aos sinais que me cercavam. Teria sido tudo
diferente? Se eu pudesse imaginar que estes seriam os últimos dias da minha vida, ou melhor, da vida a que estava acostumada, faria alguma diferença?
No entanto, de uma coisa eu tinha certeza: eu deveria ter ficado em casa naquele dia e
jamais ter colocado os pés naquela maldita praça. Jamais! — Venha, Nina — chamou Stela eufórica, apontando para um showzinho a ponto de
começar na praça Dam. Quando me aproximei, foi tudo tão rápido que meu cérebro mal conseguiu processar a
sequência de eventos que aconteciam diante de meus olhos. Zooomp! Zooomp! O gemido surdo do ar sendo apunhalado. Fragmentado. Zooomp! Uma
praça. Uma aglomeração de pessoas em uma roda. O artista de rua em uma assustadora exibição com facas voadoras. Seu olhar concentrado ficando estranho, aéreo talvez. As cintilantes facas se movimentando com incrível rapidez. O homem se aproximando. Zooomp! As lâminas afiadas se chocam, produzindo hipnóticas faíscas e gritos de delírio. O exibicionista se aproximando. A atmosfera cinza, o inebriante tilintar e brilho das facas, o burburinho de excitação das pessoas e… meu cérebro processando as imagens com enorme dificuldade. As letais facas cada vez mais perto. Meu estado de transe subitamente interrompido por uma voz incisiva atrás de mim:
— Abaixe-se! No mesmo instante tive a sensação de que alguma pessoa havia me puxado e ao me
inclinar para ver quem era senti um vento frio passar pelos meus cabelos. Só deu tempo de ouvir um ohh!!! das pessoas ao meu redor. Por que todas estavam olhando para mim? Aturdida, finalmente entendi o que acabara de acontecer: uma das facas havia se desprendido da mão do artista de rua e voado diretamente em minha direção. Com certeza teria transpassado meu pescoço se meu reflexo não fosse tão… tão incompreensivelmente rápido!?
— Nina, você está bem? Você está bem? — gritava Stela supernervosa. — Oh, meu
Deus, foi por pouco! — Eu estou bem! Só um pouco tonta, mãe. — Venha, vamos embora! — Agarrou-me com agressividade pelo braço, conduzindo-me
para longe da multidão. — Meu Deus, meu Deus! — ficava balbuciando e olhando em pânico para todas as direções.
— Calma, mãe. Não aconteceu nada! — respondia ainda meio desorientada
Não conseguia compreender por que ainda me sentia muito estranha, mas não
mencionaria tal fato com Stela no estado de nervos em que ela se encontrava. Devia ser pressão baixa.
Ao chegar em casa, o olhar de fúria nos olhos de Stela era evidente. Pronto! O estrago
estava feito. — Arrume suas roupas, filha — ela sacudia a cabeça transtornada. — Partiremos
amanhã! É só o tempo para que eu providencie algumas coisas. — Eu não quero ir! Mãe, nós acabamos de chegar à Holanda! Isto é um absurdo! —
retrucava de maneira histérica. — Comecei o ano letivo em Oslo, pouco tempo depois já estávamos aqui em Amsterdã e agora você já quer mudar de novo só porque eu sou a mais azarada garota da face da Terra? Você não vê que isto está me prejudicando? Será que você não pode esperar?
— Não! Além do mais, recebi uma irrecusável oferta caso atue fora da Europa… — a
voz dela saía cambaleante. — EU NÃO VOU! A gente não precisa desta oferta! — grunhia. — Nina, se eu recusar este trabalho uma série de portas vão se fechar para mim — ela
arfava. — Lembre-se que já fui referência em minha área, mas hoje não sou mais. O mercado está muito competitivo e vem engolindo os que não se adaptam. Precisamos ir!
— Por que eu não posso ser como todas as garotas da minha idade, hein? Sempre que
começo a fazer amigos você parece que fica insatisfeita. Eu quero uma vida NORMAL! — Que conversa é esta? Sempre tivemos uma vida normal e, bem… eu nunca me
importei com as suas novas amizades. — Mas o semblante culpado de Stela evidenciava o contrário.
— É claro que não se importa, afinal de contas eu não tenho amigos mesmo! Eu não tenho
tempo sequer de conhecê-los! Mal consigo gravar os nomes dos meus colegas! Isto é o normal para você? — indaguei com o rosto suado e em brasas, as sobrancelhas cerradas, quase obstruindo minha visão. — Já sei! — continuei sarcasticamente. — Normal para você é começar um ano letivo em Varsóvia, mudar logo em seguida para Viena e terminá-lo em Copenhague, reiniciarmos o outro ano em Oslo, mudarmos para Amsterdã, para então irmos não sei para onde, de onde logo partiremos para outro lugar, e mais outro, e outro — esbravejava aos quatro ventos. — Aliás, Stela, deve ser por isso que sou tão boa em Geografia, não é? — completei enfurecida.
— Não me chame de Stela! Você sabe que eu não gosto! — e continuou com a voz
embargada. — Nina, eu te prometo que nós vamos mudar cada vez menos. As coisas só precisam se acalmar um pouco… — puxou o ar com visível dificuldade —… e aí a gente se estabelece na cidade que você escolher. Por favor, filha, aguente mais um pouco.— O que precisa se acalmar? — Nada de mais! Na hora devida eu falo — e desconversou, como sempre. Seus
motivos: insondáveis. — Ah! Não tive tempo de dizer para onde vamos nos mudar… É um local que gosto muito e que você adorou quando criança. Quer uma pista?
Contaminada por uma raiva sem precedentes, não respondi com palavras impróprias
àquela pergunta cretina por respeito a ela. Stela insistia: — Não vai dar um palpite? — perguntou deixando um sorriso amarelo esboçar-se em seu
rosto.
Permanecia calada. — Nova Iorque! — exclamou feliz, aguardando minha reação. Acertou em cheio! Apesar de não querer dar o braço a torcer, minhas expressões
suavizaram-se. Se houve um local de que eu realmente tinha boas recordações, este local era Manhattan. Não que eu não gostasse de Amsterdã, seus lindos canais, passear de bicicleta pela cidade, sua vida tranquila. Mas algo dentro de mim borbulhava. Agora eu queria mais. Queria mais gente, mais agitação, e até mesmo mais buzinas, sirenes, fumaça, escadas rolantes em minha vida. É isto mesmo: eu queria mais vida na minha vida!
— Partiremos amanhã à tarde — completou, já percebendo que meu semblante
melhorara. — Por que tanta pressa, mãe? Ou você já tinha decidido? — Não tinha nada decidido! A oferta apareceu e pronto. E é para ontem, ok? Fim de
papo! — a voz grave confirmava que sua paciência estava ribanceira abaixo. De nada adiantaria estender aquela conversa, Stela havia se fechado em seu casulo
particular. Apesar de não ser um comportamento comum, dois assuntos costumavam encaminhá-la diretamente para este casulo: o primeiro era discutir algo que ela já havia decidido, como mudar repentinamente de uma cidade para outra; o segundo, que também me incomodava cada vez mais, era falar sobre nossa família, principalmente sobre o meu pai. Stela nunca falou. Nos últimos dois anos as nossas brigas aumentaram de forma exponencial. Queria saber algo sobre ele. Não teria uma foto sequer? Eu deveria ter muitas semelhanças com ele. Stela é morena, baixa, corpulenta, seus cabelos são negros assim como seus miúdos olhos. Completamente diferente de mim! Minha pele muito branca, meu biótipo longilíneo, meus fartos cabelos castanho-claros assim como meus arredondados olhos desta mesma cor eram a prova viva da herança genética herdada de meu pai. Dela havia herdado minha incapacidade de aceitar um não como resposta e meu gênio indomável… Por que não poderia me dizer algo sobre ele? Queria entender o porquê. Ele havia nos abandonado ou estaria morto?— Estou indo acertar os detalhes da mudança. Aproveite para arrumar as malas. Não
temos muito tempo — disse Stela com um olhar distante enquanto abria a porta. Eu conhecia aquele olhar. O mesmo olhar que confirmava que minha mãe estava com seus
pensamentos bem longe dali. Aqueles mesmos pensamentos que nos fizeram mudar constantemente, as mesmas neuras que insistiam em me afastar de todos ao meu redor, em me isolar. Já deveria ter me acostumado, mas a cada dia tal situação ficava mais insuportável. Queria outras pessoas para desabafar, contar meus segredos. Queria amigos de verdade! Os poucos amigos que fiz se perderam no caminho, ficaram para trás. Amizade exige presença, e eu não ficava muito tempo em lugar algum.
— Por que tem que ser assim, mãe? — A tristeza impregnava meu murmúrio. Ela voltou, mexeu na gargantilha do meu pescoço e me beijou a testa. — Estou indo devolver as chaves do carro e do apartamento. Nós nunca comprávamos nada de valor, como imóveis ou carros. Stela sempre os
alugava. — Eu te amo, filha. Mais do que tudo nesta vida. — Eu sei, mãe. — Senti um aperto em meu peito, abaixei a cabeça e fui para o meu
quarto. Por mais chateada que ficasse com Stela, meu amor por ela era enorme. Meus ombros
carregavam uma pesada sensação de dívida. A dor que podia ser vista por detrás do seu semblante sofrido acabavam me calando. Sabia que ela me amava. Mas era um amor estranho, doentio de certa forma. Talvez porque não tivéssemos família. Éramos só nós duas. Talvez porque houvesse algo mais… Toda vez que tínhamos uma discussão como esta, eu ficava me consumindo de remorso. No início até me sentia satisfeita pelo fato de ela não ter refeito sua vida com outro homem. Assim eu não precisaria dividir sua atenção. Mas hoje me arrependo muitíssimo de ter pensado assim. Agora percebo que teremos que seguir caminhos diferentes um dia. Como ela ficará sem mim? Será que vai suportar? Eram perguntas constantes que me martirizavam.
Morávamos no andar superior de um espaçoso e antigo sobrado. Meu quarto ficava
virado para o Sul, era claro e bem mais frio que o restante da casa. Por alguma razão, os ventos glaciais do Mar do Norte cruzavam silvando dezenas de ruas bucólicas e o atingiam em cheio. Os móveis tinham sido alugados juntamente com o imóvel, e, da mesma forma, eram tão antigos quanto ele. De novo somente as minhas roupas, sapatos e o meu notebook. Puxei as malas que guardava embaixo da minha cama, e, como não era de espantar, não se encontravam tão empoeiradas assim, afinal de contas elas estavam constantemente sendo utilizadas na nossa solitária e agitada vida de errantes.
O tempo estava nublado, e Amsterdã despediu-se de nós com gelados beijinhos em formade pingos de chuva. O check-in teria sido tranquilo se eu não tivesse me aproximado de uma banca de jornal
e visto algo que me intrigou. — Mãe, olhe! — Que foi? — Meu Deus! — exclamei assustada. — Veja! O artista de rua! Foi… assassinado!
Apareceu hoje boiando em um dos canais, cheio de facadas, ou algo assim. Stela pegou o jornal de minhas mãos e leu toda a matéria em silêncio. Não falou
absolutamente nada. Nem um único comentário. Seu corpo permanecia rígido e o rosto indecifrável. Não gostei daquela reação.
— Vamos — disse ela mais seca do que nunca —, temos que despachar nossas bagagens. — O que está acontecendo? — perguntei agressivamente. — Nada. Por quê? — retrucou de forma irônica. — Você parece assustada… Sei lá — murmurei. — É impressão sua. Algo dentro de mim fazia perguntas sem sentido: Será que Stela sabia de alguma coisa
sobre aquele assassinato e não me contou? Seria por isto que estávamos saindo dali com tamanha urgência? Não! É óbvio que não! Até porque sair às pressas de um local para outro já era seu famigerado hobby, e eu já deveria ter me acostumado a ele.
MAS NÃO! Faltando menos de dois meses para completar dezessete anos eu conseguia
me sentir ainda mais diferente e solitária do que nunca. O que antes tentava esconder, agora fazia questão de demonstrar. Eu estava infeliz! Como minha mãe poderia achar normal viver em mais de vinte diferentes cidades e países num curto intervalo de dezessete anos? Por que tinha que ser assim? Eu queria uma vida normal! Pela primeira vez, pensava em alguma comemoração no meu aniversário, algo que nunca tive a oportunidade de ter. As razões eram diversas: a primeira é que apesar de termos conforto, nunca sobrou muito dinheiro. Não que eu visse Stela esbanjar em bolsas e sapatos da moda, mas, de alguma forma, o dinheiro desaparecia. Sei que ela sempre recebeu bons honorários por ser uma referência em sua área de atuação. Minha mãe, Stela, especializou-se em um ramo da indústria de produção de lentes de contato. Sei que fez isto por amor a mim. Nasci com um defeito em ambas as córneas. Apesar de ter uma visão perfeita, a anatomia de minhas pupilas é estranhamente incomum, fina e vertical, assemelhando-se à de uma cobra, lagarto ou de um felino, como prefiro imaginar. Assustador, eu sei, mas graças à Stela, nunca me foi constrangedor. Ela percebeu que aquela aberração poderia influenciar o modo como as pessoas me tratariam. Como sempre foi umamãe protetora e uma mulher muito inteligente, arregaçou as mangas e começou a estudar por conta própria os meios de confecção das lentes de contato que existiam no mercado. Especializou-se nos diversos tipos de materiais, modelos e matizes das lentes que existiam no mundo, de maneira que seu grau de conhecimento ficou tão singular nesta área, que ela foi rapidamente absorvida pela indústria de produtos oftalmológicos. Fui criada como uma criança normal, sem distinções, graças ao uso destas lentes especiais desde muito pequena. Este era o nosso segredo, embora no início eu não soubesse se era pior ficar com ou sem elas. Como incomodavam! Mas Stela nunca desistiu. Com o tempo desenvolveu lentes melhores, com maior durabilidade, feitas sob encomenda para mim. Tudo era feito em sigilo, sempre, de forma que até hoje absolutamente ninguém foi capaz de perceber que uso estes modificados corpos refratores. Acreditam apenas que uso tradicionais lentes de contato para os meus desnecessariamente chamativos olhos castanho-claros.
Em parte sinto-me culpada por nossa solitária vida de nômades, porque sempre que Stela
ouvia falar de algum avanço científico na área, lá estávamos nós de novo fazendo as malas e partindo para outra cidade ou país. Hoje sei que, graças à sua experiência neste ramo de atividade, encontra-se também a desculpa perfeita para as suas costumeiras mudanças bruscas de vida e lugar, a válvula de escape para as suas habituais inconstâncias de temperamento.
Outro motivo para não ter qualquer comemoração no meu aniversário é que Stela fica
particularmente tensa e com atitudes, como diria, insanas, sempre que esta data se aproxima. Complexo de envelhecimento? Neurose materna? Nunca entendi.
Ah! Esqueci de mencionar que o azar é uma constante em minha vida, apesar de não ser,
tecnicamente, uma garota estabanada. Para uma mãe solitária e neurótica isto já seria prato feito, imagine se essa mãe fosse também tremendamente supersticiosa. Pois é o caso de Stela! Sempre que algum fato estranho acontecia, já era motivo para ela pensar em mudar de cidade. Como sempre fui muito azarada, aprendi a omitir acontecimentos nada convencionais que, vez ou outra, insistiam em ocorrer comigo. Cheguei a pensar que talvez fosse algum problema com a minha visão ou com as minhas lentes de contato, mas percebi a tempo que era mesmo falta de sorte.
— Vou comprar um sanduíche. Quer um? Aterrissei. — Não — refutei de má vontade. Estava imaginando se meu ano escolar estaria
severamente comprometido. — Que foi, Nina? — Posso perder o meu ano letivo, mãe. Você não fica nem um pouco preocupada? —
franzi as sobrancelhas. — Você é uma excelente aluna. Vai conseguir — rebateu ela sem dar a mínimaimportância. Seu descaso me enervou: — E se as matérias forem completamente diferentes? E se eu não conseguir? — retruquei
histérica. — Você sempre se saiu bem e, além do mais, tem coisa pior nesta vida… — Pior?! Ah! Não. O pior é a minha mãe ter de levar uma vida normal, não é mesmo? — Você não sabe de nada! Se sentisse o que eu sinto… — As palavras saíram como um
gemido dentro de uma face torturada. — Como não sei? Sou eu quem convive com você! Sou eu quem aguenta de tempos em
tempos este seu olhar de depressão e suas atitudes egoístas! E em mim você não pensa? — Claro que sim, Nina! É por você que faço estas mudanças… — Eu nunca pedi para me mudar! — Meus olhos quase saltando das órbitas. — Olhe! Estão começando a chamar o nosso voo. Vamos, eu como no avião! — Mudou
de assunto e levantou-se rapidamente. — Vamos, Nina! Que lerdeza! — Mas por que a pressa? Posso saber? — explodi. — Depois a gente discute, está bem? — e fechou a cara. Pronto, entrara no casulo novamente. Joguei minha mochila nos ombros, peguei meu
notebook e me encaminhei para a fila que se formava, com Stela logo atrás de mim, como um cão treinado pronto para me defender de qualquer ataque de um inimigo.
— Que saco! — reclamei baixinho. Ela não me ouviu, ou fingiu não ouvir. Resolvi então colocar meu i-pod e não me
preocupar com o que estaria por vir. Atrapalhada, deixei meu fone de ouvido se enroscar em meus cabelos e ele acabou se soltando. Ao abaixar para procurá-lo, senti uma fisgada nas costas e um calafrio muito forte passar e repassar por todo o meu corpo.
— Que estranho! — sibilei ao levantar. Mas dei de ombros e continuei andando. Virei
para trás e vi Stela com a expressão petrificada, olhar acuado. A comissária nos recebeu com um sorriso animado, o que mais aumentava a minha fúria,
e indicou os nossos assentos — provavelmente pensando que tínhamos algum problema com numeração, algum tipo de dificuldade visual (mas minhas lentes estavam bem posicionadas!) ou duvidava de nossa capacidade intelectual. É… realmente eu não estava de bom humor e as comissárias não tinham culpa alguma de eu estar novamente de partida para outro local onde também não saberia por quanto tempo permaneceria.
— Ande, Nina! Você está engarrafando toda a fila. — Tá bom! Quando comecei a empurrar tudo de qualquer jeito para dentro do apertado bagageiro,
senti novamente o calafrio passar por mim. Experimentei uma fraqueza momentânea e afundeime no meu assento.
Stela tinha a fisionomia assustada. — Que foi agora, mãe? — Nada — respondeu ela com uma cara sinistra. Olhava para todos os lados. Parecia
examinar cada assento da aeronave, um por um. Sentou-se reta, completamente enrijecida. Após o jantar, tomei o meu Dramin e cochilei, exausta pela nossa saída fugitiva para os
Estados Unidos. Quando acordei, as luzes da aeronave estavam apagadas e já devia ser de madrugada, pois praticamente todos os passageiros estavam dormindo, inclusive Stela. Joguei suas pernas frouxas para o lado e, aproveitando a calmaria, dirigi-me ao toalete. Quando estava retornando para o meu assento senti novamente aquele frio intenso passar pela espinha e subir pelas costas. Tremi. Como por reflexo, virei-me rapidamente. Nada! Não havia nada nem ninguém atrás de mim. Tive a estranha sensação, entretanto, de que estava sendo observada. Olhei ao redor e tudo parecia perfeitamente normal: a maioria dos homens roncando, crianças dormindo e babando nos colos de suas exauridas mães, além de alguns adolescentes assistindo a todos os filmes disponíveis durante a madrugada.
— Tolice! — disse a mim mesma. E retornei ao meu lugar. Subitamente, senti aquela
sensação estranha acompanhada de um som diferente, e, quando olhei para trás, tudo estava igual, com exceção de ter visto um vulto negro entrar no sanitário. Fiquei confusa. Resolvi que ficaria ali no corredor aguardando até aquela pessoa sair do toalete. Poderia ser bobagem minha, mas tinha que tirar a dúvida. O tempo se passou e ninguém saía do maldito lavatório. Já estava ficando cansada com a espera.
— Esta pessoa deve estar passando muito mal — caçoei da situação para mim mesma. Naquele momento, uma senhora bem gorda se levantou e dirigiu-se para o sanitário
ocupado. Ótimo! Agora a pessoa que está lá dentro terá que sair. Foi quando não acreditei no que meus olhos presenciaram: não havia ninguém naquele lavatório! A senhora entrou e saiu calmamente. Não é possível! Enfureci-me comigo mesma. Este Dramin é forte mesmo.
— Você está procurando alguma coisa, senhorita? — Ãh? — olhei para baixo e vi um senhor bem idoso me abrindo um largo sorriso. De
cima pude examinar sua calvície salpicada de sardas, sua pele sem viço. — Tudo bem, senhorita?— Ah! Claro! Está tudo ok. Eu estava procurando a comissária de bordo para pedir um
copo d’água. — menti descaradamente. — Mas ela deve estar ocupada. — Ou tirando uma soneca — zombou o velhinho sorrindo. — Ou isto — sorri também. Neste momento, o sinal de apertar o cinto de segurança foi acionado em virtude de
iminente turbulência. — Bem, vou para o meu lugar. Tchau. — Até logo, senhorita. Ao empurrar novamente as pernas de Stela para chegar ao meu assento, ela acordou
sobressaltada: — O que foi? Tudo bem, filha? —Tudo — soltei um longo suspiro. — Só fui ao banheiro. Stela olhou-me de forma carinhosa e passou os dedos pela minha farta e
momentaneamente embolada cabeleira. — Você está tão bonita. Minha menina já é uma mulher… — deixou brotar um olhar feliz
por detrás de sua face fatigada de um sofrimento desconhecido. Pelo menos para mim. Mas desisti de perguntar. Hoje aceitava resignada a mudez de minha mãe. Se ela não queria falar do seu passado, é porque deveria existir uma boa razão.
— Agora é minha vez de ir ao toalete. Não vou demorar. Evite sair do seu lugar e falar
com estranhos, tá, filha? — Mas, por quê? — E, antes que ela pudesse me ouvir, já havia se retirado do meu
campo de visão. — Que ótimo! — reclamei quase xingando. De repente senti um aperto na garganta, minha língua árida e uma forte sede me
consumindo. E, como num passe de mágica, uma pessoa surgiu ao meu lado. De pé, na penumbra, vi que me oferecia uma garrafinha de água.
— Olá, senhorita! — sussurrou o simpático senhor lá do fundo. Ele tinha um olhar
distante. — Lembrei-me de que tinha uma garrafa de água e a trouxe para ti. Ainda está com sede?
— Ãh? — soltei espantada. — Puxa! Eu… eu não sei o que houve, mas já acionei várias
vezes o botão de chamada e nenhum comissário apareceu. Acho que deve ser por causa da turbulência. Por sinal, o senhor não deveria ter se levantado. É perigoso!— Então pode pegar, ela é sua — respondeu. — Obrigada. — Peguei a garrafa de imediato, castigada por uma sede subitamente
crescente e agonizante. Do instante que desenrosquei a tampa da garrafa até o percurso que ela fez para alcançar
a minha boca, fui atingida por rajadas de luzes e sombras. Um vulto? Uma pane? Um som grave acompanhado de um soco fez a garrafa voar longe, espalhando a água pelo corredor e derrubando o velhinho. O estrondo acordou as pessoas, assustando-as. As luzes tornaram a acender. Petrificada, olhei para baixo e vi o pobre senhor caído no chão, contorcendo-se violentamente. Eu estava aturdida demais com a cena em andamento. Então ouvi um grito e vi Stela chegando com os olhos apavorados, seu rosto exangue, com a calça entreaberta, como se ela não tivesse acabado de se vestir adequadamente após utilizar o toalete:
— Oh, não! Você está bem, filha? O que houve? Que líquido é este? Você bebeu? — Stela
gania, atropelando as palavras umas sobre as outras. — O quê? A água? — A irritação fluía em minhas veias. — Sim, Nina. A água! — Não tive tempo. A turbulência… Qual o problema, mãe?! Por que você está assim? O
que está acontecendo? — berrei revoltada com sua atitude. Ela não me respondeu. A confusão estava formada. Diversos comissários de bordo corriam de um lado para o outro tentando achar algum médico entre os passageiros.
— Ele está tendo um ataque cardíaco! — gritou um dos tripulantes. Só vimos o pobre
senhor ser levado rapidamente para algum local reservado da aeronave. Eu fuzilava minha mãe com um olhar de reprovação e horror. Será que foi mesmo a pane elétrica ou o berro histérico de Stela que fez o pobre senhor ter o ataque cardíaco? Eu vi algum vulto ou foi apenas uma queda de luz que me deu esta impressão? E se aquele senhor falecesse? O pobre coitado havia batido as botas porque veio me ajudar? Por fim, os comissários pararam de passar por nós e um silêncio ensurdecedor tomou conta de todos os passageiros, em especial de mim e de Stela. O que teria acontecido com o pobre senhor? O sentimento de culpa me invadia.
— Eu o matei! — murmurava entristecida. — Não fale bobagem! — disse ela. — Se ele não tivesse levantado para me ajudar… — Nina, cale-se! Pare de chamar atenção, senão… — Senão o quê? Você vai ter que me dar uma explicação para isso tudo!— Eu vou dar na hora certa. Mas ela nunca chegou a dar.

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