Capítulo 3

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Capítulo 3
— Se for para começar hoje, tudo bem, queridinha. Senão pode esquecer. Temos pressa!
— assinalou a gerente com uma voz arrastada e cara de zebra infeliz.
— Sem problema. Posso começar agora mesmo! — concordei satisfeita.
Liguei para Stela e disse que chegaria um pouco mais tarde porque sairia com algumas
amigas. De início ela não gostou da ideia, mas como era sábado e ela estava trabalhando, um
sentimento de culpa deve ter batido em sua consciência. Só comentaria sobre o emprego com
minha mãe caso fosse contratada. Como ela chegava do trabalho por volta das 20h, inventaria
uma série de falsos grupos de estudo para colocar em dia a matéria que havia perdido. Antes
das dez já estaria em casa, e com isto Stela de nada desconfiaria.
Domingo, no meu segundo dia de experiência, as coisas na loja não iam como eu
imaginava. O trabalho era maçante e, pelo que ficara óbvio, as vendedoras estavam muito
insatisfeitas. Era só a gerente virar as costas que elas logo começavam a reclamar de tudo, em
especial do barulho e da queda vertiginosa das vendas que ocorreu assim que o pessoal da
firma de limpeza de fachadas instalou o andaime para a lavagem das pastilhas do prédio.
Queixavam-se da gerente exigente demais, das clientes metidas e insuportáveis, assim como
da baixa remuneração já que haviam reduzido a porcentagem de cada venda. Aliás, este era
um ponto importante para mim. Percebi naquela hora que eu não teria porcentagem alguma.
Minha função era coadjuvante ao trabalho daquelas vendedoras infelizes. Em que furada eu
havia me metido! Gemia absorta em meus pensamentos quando uma voz aguda abriu a porta da
loja com um grande: “Oiiiiii, Nina!”
— Melly, o que você está fazendo aqui?!
Como eu estava feliz por ela me tirar alguns minutos daquele ambiente enfadonho!
— Vim fazer umas comprinhas! — Pra variar, ela exibia um sorrisinho travesso.
Num ataque inesperado, uma das vendedoras já estava entre nós duas, como um urubu
pousando avidamente em sua carniça.
— Posso ajudá-la? — perguntou meio em dúvida.
— Não. Quero dizer… é brincadeira. Eu só vim dar um alô a minha amiga — Melly
respondeu meio sem graça.
— Seja breve. Você sabe que a gerente não permite visitas durante o expediente —
ordenou-me a vendedora com rispidez. Seu olhar de reprovação chegava a queimar.
— Ok.— Sua mãe sabe que você está trabalhando aqui? Aiii, o que foi?! — o gritinho de Melly
saiu fino quando belisquei o seu braço disfarçadamente mas com vontade.
— Com licença, é só um minuto — aproveitando-me do fato da gerente ter saído e antes
de que qualquer vendedora pudesse abrir a boca para me impedir, eu já estava do lado de fora
da loja trazendo Melly pelo braço.
— Melly, você está maluca? Elas acham que eu já tenho dezoito anos! Se descobrirem
sobre a minha verdadeira idade, serei despedida na mesma hora!
— Grande coisa! Vi sua cara de total desânimo lá dentro.
— É verdade — soltei —, mas vou esperar pelo menos um mês para ver se as coisas
melhoram e para ganhar um pouco de experiência — argumentei sem qualquer convicção.
Acho que nem Melly consegui enganar.
— Sei.
— E o que você veio fazer aqui afinal?
— Bem, é que eu gostaria de saber o que você acha de eu fazer clareamento nos meus
dentes. — E, sem rodeios, exibiu um amplo e artificial sorriso.
— Ãh?! — Não acreditei que ela tinha se dado ao trabalho de vir até aqui só para me
fazer esta ridícula pergunta. Identifiquei uma característica em Melly inicialmente bem
disfarçada em sua fisionomia displicente. Melly era ansiosa, e muito. A ponto de não aguentar
esperar um único dia sequer para fazer a tal “importantíssima” indagação.
— Meus pais acham desnecessário, mas eu estava lendo aquela revista de “Saúde e
Estética” e…
Enquanto Melly falava sobre seus planos de estética, algo inusitado começou a acontecer.
Já não conseguia ouvir um som sequer: um silêncio aterrador preenchido por um ruído de
fundo. A claridade havia desaparecido.
— Melly, eu preciso me sentar! — minha voz saiu fraca.
— Que foi, Nina? Você está pálida e… suando frio?
— Eu estou um pouco tonta — sibilei. Já sentia o calafrio se espalhando pelo meu corpo
como sugadoras ondas eletromagnéticas.
— Venha, vamos sair daqui. Vou te levar para dentro da loja — disse Melly apressada.
— Não consigo, está tudo escuro e minhas pernas estão bambas… — E, antes que eu
acabasse de falar, caí sobre a calçada. Meu tombo aconteceu sincronizado com um estrondo.— Nãããooo!!!
Horrorizada, Melly deu um salto para trás. Seu berro estridente paralisou olhos e pernas
das pessoas que passavam. Zonza, ainda tive forças para olhar para cima e ver o que o destino
me reservava: um gigantesco andaime vinha despencando e cairia acelerado diretamente em
cima de mim. Eu seria esmagada! Tentei esboçar algum movimento, mas nada. Nem um
músculo se moveu. Tentei novamente. Em vão. Nada respondia. Braços e pernas inertes. Todo
o meu corpo formigando. Fechei os olhos, cerrei os punhos e, com muita dificuldade,
obriguei-me a tragar oxigênio. Bloqueada. A passagem de ar para os meus pulmões estava
totalmente vetada. Eu estava me asfixiando. Ar. Eu precisava respirar. Quase perdendo a
consciência, concentrei todas as minhas forças para um último e decisivo impulso. Um, dois,
três…
— Ah!!
Senti um forte puxão pela cintura, como se eu fosse abruptamente lançada em outra
direção. Novamente, foi tudo num piscar de olhos. Quando dei por mim, estava com o corpo
todo retorcido a alguma distância das vigas metálicas e dos enormes pedaços de madeira
espatifados. Miraculosamente, havia saído ilesa daquela situação aterradora.
O andaime fez curva ao cair ou eu tinha conseguido reunir forças de algum lugar dentro
de mim? Meu estado de torpor só conseguiu captar as expressões de pânico e incompreensão
das pessoas próximas a mim. Melly estava boquiaberta, em estado de choque, atrás de um
grupo de pedestres também apavorados. Ainda caída e atordoada, investiguei ao meu redor
algo que pudesse me dar alguma explicação. Nada. Nem uma pista. Mas o calafrio continuava.
Então me forcei a encontrar o que nem eu sabia que deveria procurar. Em um rápido passar de
olhos, vasculhei cada canto, cada movimento, cada pessoa, o que já havia ficado muito difícil,
pois uma aglomeração de curiosos se formara ao meu redor. Nada de novo. Então
instintivamente passei minha atenção para os semblantes dos transeuntes. Foi quando me
deparei com um par de olhos absurdamente azuis por baixo de grossas e negras sobrancelhas
que me fariam perder o chão, se eu já não estivesse deitada sobre ele. Era de um azul-turquesa
vivo incomum, muito brilhante e tão penetrante quanto um tiro de fuzil em um coração sem um
colete de proteção. Seus olhos, no meio de tantos outros, fulguravam para os meus. Sob tensão
e constrangimento, desviei meu olhar com rapidez, e quando resolvi encará-los novamente
eles já não estavam mais lá.
— Nina! Nina! Você está bem? — descontrolada, Melly corria ao meu encontro.
— Sim, estou bem — respondi irritada, levantando-me do chão aos tropeços.
— Você está chateada? Você deveria estar agradecida aos céus! — ela gritava, num de
seus raros momentos de aspereza.
— Desculpe, Melly. É que estou um pouco tonta, não sei bem… — Eu estava era ficando
preocupada. Não poderia ser só azar. Tinha que haver alguma explicação para todos aqueles “quase” acidentes em minha vida. Stela com certeza deveria saber de alguma coisa, mas se eu
resolvesse perguntar, obviamente ela perceberia que algo havia acontecido e com incrível
rapidez estaríamos mudando para outra cidade ou país.
As vendedoras saíram da loja e, em vez de perguntarem sobre o meu estado, me olhavam
com expressão raivosa.
— Pronto! — resmungava uma delas. — Era só isto que nos faltava para acabar de vez
com as vendas do mês! Uma sanguinária manchete de jornal acontecendo bem em frente à
nossa loja!
Indignada com a reação delas, sacudi a sujeira em minhas roupas, ergui a cabeça e
respondi quase rosnando:
— Falem mal, mas falem de mim! Com o meu espetáculo, quem sabe agora as suas
péssimas vendas não aumentam, hein? De qualquer forma, não estarei aqui para ver.
— Você não pode sair assim! — berrou outra delas.
— Não posso? Então observe! — E fui embora com Melly, sem olhar para trás e com a
sensação de alívio me enchendo o peito. O celular começou a tocar e com ele minha intuição.
Sem olhar o visor, fiz um pedido imediato à Melly:
— Melly, posso te pedir um favor muito importante?
— Claro. O que foi? Você ainda está tonta? Quer que eu atenda o celular para você? —
perguntou preocupada.
— Não! — rugi sob tensão. — Desculpe. Eu estou bem… Mas, por favor, não conta nada
do que aconteceu para a minha mãe, ok?
O aparelho berrava nas minhas costas.
— Mas por quê? — Ela olhava desconfiada para a minha mochila.
— Melly, ela só tem a mim e é uma pessoa muito nervosa e preocupada — tentei explicar
enquanto pegava o impaciente objeto. — Se eu contar tudo o que acontece comigo, ela vai
pirar, arrumar as nossas malas e novamente iremos nos mudar. Você me compreende?
Atônita, Melly não me respondeu.
— O que foi, mãe?… Sim, está tudo bem, por que não estaria?…Tá bom. Tá bom, eu
ligo. Já estou indo. Eu também te amo. Beijo.
Melly me observava assombrada.— Caramba! É por isto então que vocês se mudam tanto?
— Infelizmente, sim. Quer dizer, também por conta deste trabalho louco dela, mas eu
tenho certeza que o principal motivo sou eu. Ela tem obsessão pela minha segurança e, pra
variar, eu sou muito azarada, como você acabou de perceber. Ela pira! Sabe como é, né? Nós
não temos família. Não temos mais ninguém…
— Puxa! — suspirou ela. — Mas, peraí, como ela ficou sabendo? Quero dizer… como
ela soube que você acabou de passar por uma situação de perigo? — questionou desconfiada.
— Nós somos muito ligadas… eu acho.
— Você quer dizer que vocês conseguem pressentir que uma ou outra se encontra em
perigo?
— Eu não. Só Stela consegue.
— Uau!
— Pois é.
Um silêncio.
— Tudo bem, Nina. Eu não vou contar nada para a Dona Stela.
— E nem para ninguém, tá? Vai que cai nos ouvidos dela por meio de outra pessoa e…
— Ok. Já entendi. Bico calado — completou Melly dando um selinho em seus dedos
cruzados.
Caminhei para casa brigando com meus neurônios para entender como eu poderia ser tão
desafortunada. Entristecida com o ridículo fracasso do meu primeiro emprego e da minha
constante má sorte, acabei esquecendo completamente da data especial. Era aniversário de
Stela.
— Esqueceu da sua mãezinha predileta? — ela me recebeu com um largo sorriso amarelo
no rosto.
— Puxa, mãe. Desculpa. Parabéns!
— Tudo bem.
— É bolo de morango com chocolate? — tentei disfarçar.
— Claro. O nosso preferido! — disse satisfeita. Na verdade era o meu sabor predileto, e
não o dela.Era muito bom vê-la assim tão descontraída, como raras vezes eu a via. Como sempre,
Stela comprava um belo bolo e soprávamos as velinhas. Pelo menos este ano ela estava feliz,
e este, com certeza, seria o presente que eu, no meu mais profundo desejo, gostaria de poder
lhe dar. Na verdade, era um bom presente para mim. Apesar de nunca confirmado, eu sempre
soube do carinho especial que ela nutria por esta cidade. Devia ter boas recordações daqui.
Stela já havia morado em Nova Iorque. Eu era pequena quando estive aqui com mamãe. Tudo
de que me recordo são das nossas brincadeiras no Central Park, de botões de rosas brancas,
de um sorriso feliz estampado em seu rosto constantemente triste. Como este de agora. Se ela
havia decretado uma trégua, eu a aceitaria de bom grado. Estava cansada de brigar.
— Nina, apesar de o aniversário ser meu, tenho um presente para lhe dar — disse com o
olhar brilhando.
— Pode falar. — Stela nunca foi de acertar no quesito “presentes”, portanto, eu não
estava nem um pouco curiosa.
— É uma notícia que você espera já faz algum tempo…
— O que foi?
— Não vamos deixar Nova Iorque. Eu decidi.
Meu peito começou a inflar de euforia, mas segurei a onda.
— Posso participar do baile de formatura? — permanecia incrédula.
— Claro que sim. Por que não?
— Quando acabar o ano posso me candidatar a algumas universidades? — desconfiada,
tornei a indagar.
— Claro, filha!
— E se me aceitarem? Aí não vou poder mais mudar de cidade por um bom tempo,
quanto mais de país, mãe! — As palavras saíram quase como um vômito. Eu estava acelerada.
— É evidente que não! Você terá de concluí-la para que possamos pensar em nos mudar
de novo, não é mesmo? — ela deixou brotar um sorrisinho torto. — Além do mais, é óbvio
que vão te aceitar. Você é uma aluna excelente! Com certeza também será uma excelente
psicóloga.
Alguém tinha de me beliscar. Eu teria uma vida normal?! Poderia fazer planos para o
futuro e não apenas viver o presente? Estava louca de felicidade, de vontade de sair correndo
para a escola e contar para Melly, para o mundo inteiro. Antes que eu saísse da sala dando
cambalhotas de alegria, minha mãe fez uma cara brava:— Você está esperando alguma correspondência?
— O quê?! — pronto, pensei, estava tudo acabado. Se ela leu alguma correspondência,
estaria uma fera comigo por ter lhe escondido que eu estava procurando emprego.
— Você não tem nada a me dizer? — tornou a indagar com um olhar que eu não
reconhecia.
— Bem, mãe. Quer dizer, é que…
— Estou ouvindo — respondeu firme.
— Eu te escondi uma coisa.
É claro que eu não ia mencionar sobre a queda do andaime.
— O que foi?
— Na sexta-feira eu preenchi alguns formulários de empregos em diversas lojas de
Manhattan. Ontem, quando me apresentei numa loja de roupas, a gerente me contratou de forma
imediata. Mas não deu certo!
— Eu sei.
— Ãh?! Sabe? Como? — Parei um minuto. — Já sei! Foi Melly quem lhe contou.
— Nada disto. Nina, você pode até omitir coisas mais íntimas para mim, mas não se
esqueça de que mente muito mal. Só sei que desconfiei. Primeiro porque ontem você não
respondeu às minhas perguntas com objetividade, e segundo porque Melly sem querer ligou
para cá procurando por você.
Droga! Tinha que ter contado para Melly logo de cara.
— Desculpa, mãe.
— Tudo bem, filha. — Seu semblante melhorara. — Eu sei que também tenho a minha
parcela de culpa nesta história.
— Eu quero uma vida diferente, mãe. Quero conhecer pessoas novas e não apenas os
colegas do colégio. Acho que nossa vida diferente fez de mim uma garota estranha. Eu sinto
que tem algo errado em mim, mãe.
— São os hormônios, filha. Na sua idade eu também era cheia de dúvidas, também queria
coisas diferentes.
— Não é isto… É que eu me sinto diferente dos meus colegas e… — Isso passa quando chegar a hora! — interrompeu-me bruscamente. Sua resposta
áspera escondia os olhos inchados, cheios de lágrimas. Ela os secou, com o pretexto de ajeitar
os cabelos, bem rareados com o passar dos anos. — Tome! Esta carta chegou hoje à tarde.
Puxei o envelope, engoli o texto impresso e em questão de segundos já estava com um
sorriso escancarado.
— Eles me aceitaram, mãe!
— Eu já desconfiava, filha. — Stela retrucou orgulhosa. — Mas você não acha que
trabalhar à noite pode prejudicar os seus estudos? Vai acabar ficando muito cansada. Além
disso, você não precisa, Nina.
— Eu sei, mãe. Mas eu quero. Nem que seja por pouco tempo — explicava agitada. —
Trata-se de uma loja de departamentos que recebe montes de clientes estrangeiros. O fato de
eu saber muitas línguas ajudou bastante. Fui escalada para ficar na área dos livros, CDs e
DVDs, que era a que eu mais queria.
— Eu não disse que você acabaria me agradecendo por termos morado em tantos lugares
diferentes? — ela me deu uma piscadela. — Tudo bem. Que assim seja e que Deus te proteja.
— Mãe, eu não estou indo para a forca! Eu só vou trabalhar. Quem sabe o fato de eu lidar
com pessoas de todos os cantos do mundo já não seja um estágio para a minha psicologia?
— É. Pode ser. Vamos ver.

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